terça-feira, 29 de março de 2011

Atravessar

“Como se ele completasse o gesto que ela iniciava,
o sonho que ela dormia. Sempre preferira os homens brutos.
Mas ele a estarrecia com tanta doçura.
Ela também o espantava.
O seu fraco sempre foram as mulheres delicadinhas.
Mas ela o surpreendia com a sua intensidade e paixão.
Como se gritasse as palavras que ele buscava, o sentido que não tinha.
Como se iluminasse o valor de todas as coisas,
coisas que ele antes nem percebia.”

Claudia Lage


Acredito cegamente que passava das seis da tarde. Sei que é possível supor porque, muito embora o relógio da Catedral ousasse não confirmar, naquele instante quem tinha o controle remoto do tempo era eu. Quase noite, mãos dadas, caminhávamos. Seis da tarde. Não me peça para explicar... Sei o tamanho do meu desatino, mas era essa mesmo a sensação que me possuía: A de que nada em volta sabia mais a respeito do tempo que eu. Com certa simplicidade, a senhora da pipoca embalava um pacote de tamanho padrão - com toda a habilidade que só as mãos de senhoras que trabalham também aos domingos o fazem - enquanto desviava olhos de muitas décadas e sorria para mim cheia de uma esperança muda. Ela desejaria que o meu sorriso tardasse a sair dos lábios. Tardaria.
Toda a praça era invadida pelo meu desejo de que aquela paz de espírito, que me acometia ao esperar o sinal fechar para atravessar a rua, fosse a paz de cada pessoa que passasse por mim. O dia e a hora exatos em que uma epifania em forma de licença poética fez com que eu entendesse muito claramente os dizeres de Clarice Lispector: Havia a levíssima embriaguez de andarmos juntos. E a cada palavra proferida onde o assunto era um pronome primeiro e muito pessoal, e tão plural que agora não mais me amedrontava, faria pensar sem demora. E por que é que, dessa vez, haveria de ser diferente? Porque era ele... as boas sensações me sussurravam. Mas a razão insistia - e por que ele? Por que assim, com essa barba mal feita, crescida, um pouco rala? Dessa forma inusitada que exige tanto um doar-se maior aos olhos dos outros ao passo que esse receber é tão íntimo, tão particular... E todas as perguntas se desfaziam enquanto ele brincava de me morder as bochechas e olhar como quem pede apenas o pouco de alegria que guardo de tudo e disponho para demonstrar.
Sentia como se o destino me afirmasse a razão de si mesmo em tudo que eu negava. Não é que a nossa brincadeira de enxergar pouco o que está mais adiante não fosse sincera... Creio mesmo que era síntese do que vivíamos naquele fim de tarde. De nada me importaria se não víssemos nada que estivesse a alguns metros, pois tudo aquilo era próximo. O outro lado da rua. Uma ânsia de viver o ininteligível me encarava e, ao fazê-lo, não precisava dizer a que vinha. Não precisava ser nítida, contanto que a compartilhássemos. E éramos nosso assunto predileto. E enquanto o fôssemos, ele atravessaria minha pele, meus escudos, minha secreta vontade de fugir de qualquer lugar enquanto é tempo. E ficaria ali, pelo vão prazer de me atravessar e tocar a boca na minha, invadindo qualquer espaço vazio que eu quisesse proteger das suas investidas tão incontroláveis. E ele me atravessava.
Encostava o queixo simetricamente proporcional em meu ombro para murmurar qualquer deletério que eu fizesse muita questão de ouvir, naquela espera. E a todo momento meu comando lhe daria o rumo do lugar esperado, da palavra desejada, do gesto que nascia antes mesmo que supuséssemos seu efeito. As vitrinas refletiriam muito mais do que dois rostos que entrelaçam línguas enquanto esperam o coração passar pela boca depois de tanto saltitar. Refletiriam nossa busca por tudo que já éramos, sem ao menos perceber: Felizes.
Logo depois das seis da tarde, eu me sabia feliz. Mesmo antes. E depois. E agora. Consciente, saber-se feliz naquele domingo fora tão só o que eu escolhera. Havia escolhido, em verdade, compartilhar ali um entusiasmo que ali mesmo nasceria, ou sempre que atravessássemos a rua politicamente corretos, ou nos atravessássemos, com afinco. Passava das seis da tarde, havia a levíssima embriaguez de andarmos juntos. E isso era tudo. Tudo que, depois, eu saberia dizer sem confessar que minha escolha era adorar sua companhia. E adorá-lo ali, do jeito infantil que se adora enquanto entardece e a senhora das pipocas embala um pacote médio... Ele era também uma escolha, bem dentro de mim. Travessa. Atravessada. Não havia por que ou poréns.

domingo, 20 de março de 2011

Bellum omnia omnes


"Estou adorável. Quem não me conhecesse, me compraria, assim, pronta para a sessão noturna do meu teatro, em cartaz nos últimos tempos. O ser humano faz da cara o que quer... Comigo não será diferente", pensei. E desci as escadas certa de que a noite que me esperava não era, nem de longe, o itinerário ideal para o meu estado de espírito. Não seria de lamentar se o motorista errasse o caminho pra qualquer lugar infinitamente longe dali.
Respirei fundo no desembarque e treinei aquela expressão facial de quem está ambientada com a ideia. Mais uma vez, minha inconstância tinha me pregado uma peça daquelas. As mentiras têm pernas curtas, mas todas as minhas estavam envoltas em uma saia emprestada que cobria bem o que precisava ser coberto, enquanto a parte à mostra contribuía para me rasgar de vergonha do imbróglio da ocasião, em cada passo. Eu era uma barata tonta à luz de uma lâmpada fluorescente inadequada para segredos tão sombrios. Atrapalhada por um instinto que não devia estar ali.
Aquilo tudo regado a muito constrangimento, bebida gaseificada e um pouco de gente esquisita me dava nos nervos... Foi o que notei assim que acordei. Deveria ter fugido dali com o salto alto na mão feito noiva arrependida, aproveitando pra borrar a maquiagem com duas ou três lágrimas e benzer com aquilo um fim mais do que necessário. Permaneci. A situação era mesmo ridícula, como eu merecia que fosse. "Cada um busca, para si, o que acha que merece."
Cada olhada no espelho me fazia lembrar que eu não poderia voltar ao início daquela busca e escolher outro caminho. Estava feito. Respirei, limpei o lápis borrado feito olheira pela enésima vez e atravessei a porta como quem vai à forca. Desde muito menina, achava que merecia um amor que exigisse obstáculos, buscas, toda aquela marmelada dos filmes e contos de fada. Até esse ponto ainda vá lá, tudo ok. Eis que, agora, tudo era dispensável. Eu só queria algo fácil, instantâneo, sem complicações.
"Construir coisas sólidas é complicado demais... Principalmente com esse brinco de bijuteria pesando nas minhas orelhas e essa blusa de regata um pouco larga." A cada coisa ou pessoa que passava em direção à saída, eu quereria mesmo era passar com ela. Desculpem-me a sinceridade, mas em estado natural, sem a cegueira da paixão, eu tenho uma puta de uma preguiça dessas ocasiões que o amor nos obriga a viver. Preguiça de amar. De me convencer que estou feliz. Da renúncia que essa história toda envolve. Sou egoísta e narcisista demais para me esquecer de mim.
Gosto mesmo é de lutas involuntárias, onde cada ato é uma prova do quanto vale a pena cometer aquele mesmo ato. Bellum omnia omnes. Todos contra todos. Em meados da indecisão. Confirmado o tédio. Desejando aquela fumaça do desaparecimento dos mágicos famosos. Eu cada vez mais convencida: Talvez eu não houvesse sido programada para lutar ao lado de ninguém que exigisse o mínimo do mínimo dos esforços... Não por enquanto. Principalmente se não fosse tão mínimo assim, para mim. Estava chegando ao fim... E eu tinha vontade de chorar quando pensava que este sonho e estas memórias iriam pelo ralo, como todas que os antecederam... Convicta, concluí que o fim do espetáculo não tardaria.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Persecutória, permanece

Talvez não tenha sido a primeira vez, mas hoje me traíram. Assim, sujeito indefinido. E eu estou aqui, sentindo isso com todos os meus músculos, há horas e horas. Foi uma traição de pequeno porte, torpe, por terceiro, quase perdoável... Mas perdoar, não hoje.
Por muito tempo houve uma fumaça de despreocupação que não me deixava saber que diabos significava literalmente o verbo trair, embora da ação eu não houvesse - em definidos momentos - mantido a necessária distância.
Princípios que não julgava primordiais, promessas insignificantes... Substituídos. Inutilizadas. Traídos, traídas. Quase nunca traí minhas vontades, raras vezes traí meus sentimentos, mas com ambas situações eu me traía. Assim: A todo o mais ou a mim mesma, com avidez, em ímpeto ou caso pensado. De igual forma, sempre que deixava o assunto pra lá. Sempre que fingia não notar o tamanho da minha traição.
Distraíam-me os acasos, os mistérios, doçuras, música. Tudo me distraía enquanto traía. O trair, em si, eu sempre mantive no fundo da gaveta, aprisionado. Agora, entretanto, a palavra e a ação me doem porque estou do outro lado. Não é beijar outra boca. Não é contar um segredo. Não é deixar o monótono dar lugar ao emocionante. Não é quebrar um elo de confiança. Não é nada do que eu já possa ter feito, vivido ou pensado. É mais amargo. É traição.
E hoje eu sinto como se estivesse na condição de perpetuamente traída. Por tudo que é sagrado, dói como se fosse verdade. Dói como se fosse em mim. Dói como se continuasse sendo.
Quem sou eu para trair? Se quase não aguento nos ombros o peso que a traição faz recair sobre mim num modo tão ofensivo, cruel e inesperado - ou apenas supervalorizado - no dia de hoje!? Eu sou aquela que sempre se vangloriou de ser fiel à própria felicidade e a poucas outras coisas além disso, nesta vida. Eu sou aquela que com minguadas exceções nunca mediu consequências em se tratando de obedecer um desejo que eu avaliava não apenas justo, mas extremamente necessário. Eu sou o orgulho que eu sempre ostentei em ter a liberdade de mudar de ideia e trair quando for preciso. Uma coisa com outra, uma sensação com outra... Entre tudo que eu sou, hoje eu sou, finalmente, traída.
Hoje por uma amizade, amanhã não se sabe. Das características de uma quase-amiga chamada traição, uma delas - ocorre-me agora - é ser persecutória. E por manter posse de uma sinceridade que grita, sou levada ao caminho da crença de que a fidelidade com as coisas e sentimentos deve existir, quando e desde que sincera. É mais fácil avaliar até onde vai minha coragem de trair o que (e quem) quer que seja, vivendo o que me ocorreu hoje, sentindo o que sinto agora.
Porque quem abre as portas para a traição entrar conviverá com ela. Transitória ou prolongadamente, a sua própria escolha. A quem a traição chega sem avisar, não é possível prever. E então, a partir de hoje, escolho trancar a sete chaves a porta de saída para as traições de todos os gêneros, por tempo indeterminado, até voltar a acreditar que há mais revés do que vantagem nisso. Coisa essa que hoje eu sinto que não acontecerá. Porque, lembro bem, hoje eu fui traída. E eu não espero me esquecer do desprazer dessa sensação tão cedo.

terça-feira, 15 de março de 2011

Livres para ser: Juntos.

Desiludida, despreocupada, porra-louca. Foi assim que fui encontrada pelo cara que me arrancou inquietude desde a primeira vez que o vi. Lembro-me da roupa que vestíamos naquele vinte de agosto, bem como lembro das primeiras impressões. Impossível esquecer das semanas sem contato algum, daqueles 4 e-mails e todos os outros que viriam. Impossível não lembrar do domingo em que foi dada a largada de uma tímida sedução. Do bom humor com que ríamos de todas as nossas infinitas semelhanças e depois do nosso infinito desejo de permanecer na “distância-padrão” o maior tempo possível. Nunca imaginei, e sou muito franca em admitir que de fato jamais cogitaria que fosse me sentir tão protegida por ele. Tão bem cuidada. Tão longe de todos os medos. Uma porta de vidro, um sorriso em um dia ruim, sobretudo uma amizade sincera, até que um vinte de novembro veio bem a calhar. E lá estava eu: Desiludida, despreocupada, porra-louca. E prestes a cair de amores pelo ser humano incrível que há detrás daquele óculos e daquela cara de nerd que despertou meu interesse. Sei que isso não tem cara de depoimento de aniversário, mas é muito sincero, então decido agora que esse C de confissão que demontra nosso C de cumplicidade será mais um de meus cês entre tantos. Obrigada por não ligar a mínima para a minha desilusão, para meus despropósitos, para a minha loucura. Por fazer com que cada dia eu tenha mais vontade de escrever linhas intensamente breves de uma história linda e louca de contar para os meus netos. Decididamente, você merece felicitações pela liberdade que me dá, mas, principalmente, pelo amor livre que me inspira.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Ou eu só queria muito?

Logicamente, ele não lia com os olhos dos dedos que eu escrevia.
E, é claro, por mais que se esforçasse não entenderia uma palavra sequer do que falava.
Talvez eu não fizesse questão.
Era bom que ficasse uma excitante dúvida acerca do que toda aquela estória poderia ou não significar.
Eu só esperava que tivesse muito claro entre um princípio e outro que, caso me ferisse, eu seria capaz de ferir também.
E em proporções assustadoramente maiores...
...não se importava.
E a cada vez que me subestimava, eu teria ainda mais vontade de que ele engolisse aquele fato cruel:
Eu era a mulher ideal.
Ainda que, às vezes, fosse divertido crer que, de fato não tínhamos certeza.

terça-feira, 8 de março de 2011

Nostalgiador

Depois de um dia cheio, adentro a casa e a luz do quarto queima. "Que saudade filha da puta!" é o primeiro pensamento ao ouvir o estouro dentro da lâmpada.
Tomo um banho demorado e coloco aquele meu vestido lilás de risquinhos vermelhos quase comprido demais, com detalhes de manufatura no busto. Amarro os cordões na nuca logo antes de fazer uma repartição simetricamente contestável. E depois brinco de secar os cabelos repartidos no escuro. Ajusto o secador para um jato de ar frio, já que quero acordar para a vida. Miro o rosto. Mantenho a calma, mas quase não consigo respirar. Espero, em vão, que o pulmão decrete falência com um sopro gélido em baixa voltagem. Bobagem a minha. Meu secador e minha nostalgia são parecidos, noto agora. Propositalmente quase me sufocam mas, no fim das contas, têm lugar certo no armário, esquecidos: Ao lado do desfibrilador, inutilizado graças a Deus. E à vida que ando levando.