quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Do lado de fora

Você me quer? Você cuida de mim?
Mesmo que eu seja uma pessoa egoísta e ruim?
Você me aceita
E me dá a receita
De como conviver com um monstro mesquinho e careta?
Você me respeita
Não grita comigo
Mesmo que eu tente tudo pra te irritar?
Você tem que entender
Que eu sou filho único
Que os filhos únicos são seres infelizes
(Cazuza - Filho Único)

Caro filho único,
É uma pena e uma oportunidade única os nossos caminhos terem convergido. É como se o mundo tivesse resolvido se dobrar para unir o próprio umbigo, como se fossem dois. Esta impossibilidade geográfica dimensiona a proporção de nosso atrito. Centelhas. Dois umbigos do mundo disputando o posto de umbigo oficial.
Não conservo certeza de que ainda saiba falar de você sem falar de mim. A condição nos é inata. (O que diabos faremos com ela?) Somos seres herméticos mas, na essência, sempre tão parecidos. Um reconhece o outro e, quando teimam em não se repelir, os filhos únicos sofrem no convívio diário. Uma queda de braço para estabelecer os critérios de um par ou ímpar. As mãos desatadas para ultrapassar um poste no meio da calçada. O autoritarismo peculiar no tom de voz.
Há muitos de ti com irmãos. Personalidade forte, gênio ruim, temperamento difícil? Tolice! São todos apenas filhos únicos acidentalmente mal posicionados nas estruturas familiares. Reis de seus narizes empinados. Seres infelizes porque aceitaram ver recaído sobre os ombros o peso de ser um mártir, sobre os quais repousa, acidentalmente, o que lhes parece ser os piores problemas, infortúnios e dilemas. E, sempre com todo mérito que houver, atribuem ao próprio empenho o que houver de melhor.
Eu sei que a tua desgraça é não ter tido a chance de praticar a experiência de ser deixado de lado, pelo menos um pouco, enquanto era tempo. Tu nunca foste negligenciado antes, senão agora. Nunca ninguém se preocupou tanto consigo mesmo quanto tu, senão eu. Tuas lamúrias sempre foram ouvidas com a melhor atenção, sem interrupções, e eram só tuas as atenções, os brinquedos e o colo materno. Zelaram por ti como se zela por um príncipe, um monarca absoluto de absolutos desejos e vontades.
É por isso que sofreste na primeira derrota da tua vida tanto quanto na mais recente. Com o passar do tempo, pretensiosamente tu achaste que daria conta de lidar sozinho com as pequenas rejeições e decepções. Bobagem! O filho único não supera o trauma, não assimila o choque, não deixa nunca de se espantar com o fato de que há quem não lhe seja condescendente. O desdém alheio, mesmo que mínimo, é um grande baque.
"Como pode que alguém não queira dar ouvidos a mim, o ilustríssimo filho único?", tu pensas. "Como pode que alguém pense tão diferente de mim e não ceda?", eu penso.
- Tu te crês senhor da razão!
- Soberbo e egoísta!

Narcisos, condenamos principalmente (veja você!), os que nos são espelhos.

Tu és o eixo do mundo. Hors concours. São minhas as razões, o discernimento e a sensatez. Hors concours. Merece ser tua toda atenção. Mereço a renúncia, a reverência e a dedicação. Hors concours. 

Tranquemos a porta da casa em que nos fizemos filhos únicos.
É do lado de fora que a vida costuma acontecer.