sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Eco [4]

De seco, cortando fundo, ela sentenciou, para começo de conversa: Não te quero mais. Não tenho estrutura. Disse firme, sem alterar a voz. As frases consolidadas, eu podendo ouvir os pontos finais deixando claro que tinha se repetido aquilo tempo e vezes suficientes, para se convencer. Sopesado consequências. Ensaiei contra-argumentar e ela, quase engolindo o lábio inferior, acenou que não com os olhos apáticos, aparentemente de uma maneira calculada. Eu me contive e aceitei. Era não para mim, então.
Era não para o benefício da dúvida e sim para a dúvida ou para as centenas de motivos que, antes, eu havia dado a ela e consideraria legítimos. Mas ela não fez antes. Esperou acumular. E, então, esperou um estopim. Procurou um estopim. Quem sabe? Mulher sem razão é melhor que mulher com razão de sobra. O que digo, é lógico, para reiterar que preferiria que ela tivesse me batido, feito o drama, desaparecido, jogado bebida na minha cara, injuriado o meu desempenho sexual por aí para terminar quando eu descobrisse.
Se eu parar para pensar, ela também me deu alguns motivos. O tal amigo com quem conversava intimamente no fim dos domingos, e eu vim a saber depois. O ar de boa moça com aquelas aventuras no passado. Uma carreira bem encaminhada e, por conta disso, muito nariz empinado. Ser interessante demais, por exemplo. É uma honra e uma desgraça estar ao lado de uma mulher tão viçosa.
Laura não era do tipo de mulher que todo cara olha quando entra no bar. Ela era apaixonante no momento em que sorria para agradecer ao garçom, quando erguia a sobrancelha esquerda para destilar uma ironia e quando espetava um ponto fraco do discurso de alguém para sentir o tom com que o interlocutor tomava a ofensa.
Sentenciou. Esperou. Não era. Era. Sorria. Espetava. Todos os verbos no passado, já que há muito não sei mais quem ela é. Muda-se muito em pouco tempo longe. Em todo caso, Laura se dizia dura e se mostrava, pelo contrário, afável e terna no cotidiano. Mas foi dizendo (e não dizendo) coisas que o nosso nós terminou. Duríssima, ela foi. Correspondia ao seu discurso, e não à sua prática. Ou eu que sou romântico demais e enxerguei amor justo nas coisas que poderiam ter feito com que eu a odiasse nos primeiros três minutos de conversa. Que construí, com fé, a falsa premissa de que o amor suportava, enquanto a falta de "estrutura" da Laura ruía sobre a minha cabeça.
Eu me dizia: que é o amor, senão essa tontura e esse desespero e essa saudade? O amor é esta coisa linda e maravilhosa, mansinha e enlouquecedora. E ela ali, socando a minha cara verbalmente com aquela baboseira da engenharia. Na hora, não me dei conta que Laura não suportava não saber, não sabia lidar com as coisas fugindo do controle, e isto infelizmente incluía os sentimentos.
Não resistimos àquelas duas semanas em que estive fora da cidade, porque para ela a distância era nociva, tão nociva, que a consumiu. Quando Laura irrompeu, com cara de atormentada, a minha porta adentro naquela noite do meu regresso, soube que boa coisa não podia ser. Não me abraçou. Não era fúria - eu já a vi espumar de ciúme, mesmo negando - e não era tristeza. Era um desequilíbrio. E o fato de ela não dizer uma só palavra e me encarar fundo, olhos nos olhos, sem lacrimejar, só podia significar que era o fim.
Esperou. Não era. Era. De seco, cortando fundo, ela sentenciou, para começo de conversa: Não te quero mais. Não tenho estrutura. Não sei se foi orgulho. Possivelmente uma exacerbada sensação de impotência diante dos precários métodos de construção de um amor. Talvez Laura ache que o que importa no amor são as certezas, enquanto eu creio que o que o amor mais faz é colocá-las à prova, suspensos no ar, sem guindastes de segurança.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Imagino

Hoje troquei as folhas de rascunho debaixo do teclado. Chegando em casa, trocarei as fronhas do travesseiro, enquanto desisto do resto. Faço a mala amanhã de manhã. Descartar rascunhos e fronhas não são propriamente recomeços. Um banho demorado e eu deito, de barriga pra cima, a cabeça sob as fronhas limpas. As coisas, claras como o teto, à frente da retina, mesmo com as pálpebras fechadas. A melancolia privada, bonita de tão cinematográfica. Um desabafo hermético. Que obviamente não combina para sextas à noite, mas convém, imagino. Chega sempre a hora de viver o que ignoramos. Imagino.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Ninguém contesta

A segunda-feira começa com o rastro da espinha enorme na testa e uma ferida por começar no lábio inferior. Não ligo. Se bobear, dou uma piscadinha pro espelho, enquanto ajeito a franja comprida em cima do redemoinho. Cabelo que eu não seco. Tô achando lindos os fios todos fora do lugar porque estiveram molhados sobre o travesseiro.
Eu me flagro intervindo quando deveria calar, mas a própria consciência tardia do ocorrido já serve de tranquilizante, quiçá de aprendizado. Tenho comido como um búfalo e pago o preço de engordar dois quilos num mês. Vejo a idade chegar sem fazer muita cerimônia. Mais do que eu gostaria, falta-me o tino para deliberada e reiteradamente fazer o bem, mas quando eu faço é sem olhar a quem. Artista de rua. Ex-namorado. Velhinho no caixa do supermercado.
O mau humor alheio não me confunde a fé de que o dia vai ser incrível. O sal grosso, no fundo, não me tira do sério. Reclamo um pouco pra não ousar o disparate de bradar que tá lindo e leve, diria mesmo perfeito, tá dez, não tem crise. Um coração cintilando só tira tempo pra bom agouro.
Não aprisiono o elogio, nem intimida a falha. Tenho sorrido pra câmera frontal. Pro reflexo no aparador do escritório. Nas vitrines. Até quando forjado pra não mostrar ao mundo, é bem sincero. Não sou mais mártir do que me dá prazer. No fim do dia eu durmo e ronco tranquila, perdoando todas as imperfeições. Deixo claro que essa disposição pra ser feliz é a minha evolução, particular e paralela, mas a paixão se incrusta no que é bonito da vida. Se atribuir a nós, ninguém contesta.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Do que pende

De um lado o milagre de quando a minha boca toca na carne e o meu abraço veste ele como um terno, e o dele a mim como um vestido velho florido e rodado. Do outro o suplício do tempo longe, menor que seja. O quanto não se dá conta de que se eu digo "eu gosto de você" quero também dizer "não gosto destes outros, não sei o porquê" ou "apesar de diametralmente longe de ser confortável, é de você". Não suspeita a batalha diária de renovar a escolha, ou suspeita e não pronuncia uma palavra a respeito, o que dá quase na mesma.
Não, não me venha com essa de que esse tipo de coisa não se confessa. Esse tipo de coisa evita-se sentir, mas uma vez sentido nada mais há para fazer. Descobrir um amor de rompante dá uma dúvida sobre tudo que pode ser efêmero e corriqueiro nele. Dá coragem de designar o outro, oh sim, meu amor, mas não de conjugar o amor em primeira ou segunda pessoa. Ainda não ou nunca irá, não se sabe.
Acho doído que o mundo quase inteiro não compreenda o quanto é bonito ser simples ao lado dele. Acho doído ter que fazê-lo enxergar as agruras de, estando no mundo, ser complicada ao lado dele. A cada vez em que não põe o dedo nas minhas feridas, mas também não as lambe, coisas que eu tento insistentemente fazer.
Eu avalio todas as referências, que gosto tanto, que entendo sem esforço, como se tivéssemos criado juntos o gosto pela arte, experimentado a audição e enxergado a vida. A consciência tranquila de que é, da cabeça aos pés. Não uma versão inventada para agradar a quem enxerga. É. Por melhor que pareça e por pior que seja. Continuará sendo, passem mil eras, mil gentes. Passe eu, ainda será. É o que é, o que está sendo, sem medo. E vem o desvario de crer na transformação que o tempo e o querer estar junto são capazes de operar.
Trato de imaginar Têmis. Não a convencional, que se confunde com Dice, espada em punho, a balança na outra mão. E uma venda nos olhos, claro, a cegueira providencial. Justíssima. Muito que bem. Não, não. Minha Têmis deixa a espada cair, desata o nó da venda. Vê tudo, tudo. Todos os esforços para segurar a balança, enquanto enxerga o precioso e o imperfeito. Prezarei por tudo. É justo que do desafio do que pende para o não e do desatino do que pende para o sim sejam feitos os amores.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Carta aberta à dona de um coração ferido

Não quero atacá-lo. Poderia, mas não quero. Porque já estive no lugar dele. O meu clamor por liberdade berrando, altíssimo, contra aquele medo de uma decisão pior. E aquele pavor de ser hipócrita rondando. De nem saber mais no que eu acreditava. Sentindo como se num labirinto em que só dá pra intuir a tontura, nunca o lado certo, na direção da saída. Eu, que também já errei e precisei de perdão, conservo a certeza de que os perdões que me deram - permitindo que eu seguisse o trecho e aliviando, em silêncio, o fardo que me pesava tanto - tornaram o mundo melhor. Quanto a mim, eu só podia, aos poucos, me perdoar também. Os homens são sempre um pouco meninos e nós, um pouco meninas. Por isso temos medo. 
Nem por isso posso defendê-lo. Gostaria, mas não posso. Porque já estive no teu lugar. Quis hostilizar esperando que o crime, porque passional, isentasse de pena. Da que eu me dava e da que eu sentia de mim. Como num acesso duradouro de cólera ao qual a gente se permite quando acha que foi ferida bem fundo. Quando supõe o abismo mais intenso da nossa alma, provocado por alguém. Por alguém? Mesmo? Ao deixar que se perpetue a mágoa, não é alguém que segue afundando.
Eu demorei tanto, tanto, tanto pra entender que o que valia não era o que me fizeram, mas o que eu faria com aquilo. Eu aprendi cedo, mas como um ensinamento que precisa ser constantemente revisitado, na escrita e na vida. Daí dizer que demorei. Advogada do diabo, hoje encantada por uma ideia grandiosa de justiça (seja divina, cósmica, kármica ou cronológica, sei que há), eu compreendo que eu, pequenina, jamais seria capaz de fazê-la com as próprias mãos. Jamais serei isenta o suficiente para discernir, vigiar, punir as mazelas do mundo sem me confundir com o próprio mal que me feriu. Que abomino. 
Já fui deixada, ignorada, trocada, traída e até queimada. Senti a mesma dor que a tua, porque bem no fundo, toda dor bem funda é igual. Chorei tanto. Ninguém tinha culpa. Ninguém viu. Fiquei tão quebrada. Quem me olha na rua, não diz. Eu me detive, é claro que me detive, o tempo que foi necessário em cada mágoa, para depois retomar a marcha. Mas quem quer ser feliz algum dia depois de ser triste precisa, mais duras que sejam as penas, aprender a seguir.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O Largo

Sábado, bem cedo, as ruas quase desertas inda são ruas. Vão-se os séculos, fica nelas a firmeza dos passos. Precárias e contínuas, em cada pedra uma história. Cada prédio antigo tem um silêncio, atemporal. Inspira a fé que anima toda igreja e todo credo. É um silêncio que já assistiu a muito exagero de bar, mão dada, moeda de pedinte, fonte dos desejos. Tanta, tanta, tanta possibilidade. Multifacetada a cidade, a gente pode ser como é. Fãs do que somos. Legião de desiguais comungando – nem que seja – somente um lugar. Avista-se a esquina e já se sabe o que espera: o Largo. Fartíssimo à primeira vista, provoca um deslumbramento que dura. Infinito no quanto singular. Um espetáculo à parte. Imenso em mim, tanto, que um retrato nem consegue demonstrar. Tudo que se vive de raro naquela não viela fica, docemente, encerrado ali. O Largo, lhano como aquele riso, guardará a certeza dos dias em que, juntos, até caminhar foi mais leve. Amor como uma unidade de espaço: o Largo. Onde a gente quer estar, sem pressa, apesar do tempo e além dos passantes. Depois de conhecido, o Largo acompanha. Estranhamente familiar e capaz de conter o encantamento e o eterno do instante vivido ou imaginado, como toda arte.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Eco [3]

No feriado, resolvi não pensar em Laura. Optei por retomar o hábito de manter as rédeas da vida com a firmeza que arranca pedaço das palmas das mãos, tentando afastar a minha guia desse rumo melancólico em que a tragédia amorosa tinha me colocado. Eu decidi que era hora de ser prático, pegar a estrada e viajar. Seria perfeito dizer "viajar com os amigos", não fosse o fato de que eu ainda não havia me reaproximado de nenhum, enclausurado de saudade como estive naquelas semanas. Teria achado patético compartilhar com qualquer deles a falta que a Laura vinha me fazendo.
Mas queria, também é verdade, fazer algo que eu não houvesse feito enquanto estivemos juntos, por uma falsa noção de respeito, por medo de desagradá-la e pelo comodismo próprio das relações consideradas estáveis. Na minha cabeça, fazendo a viagem eu vingava um pouco a vida de solteiro à qual eu renunciei naquele quase um ano de paixão em que eu sentaria, rolaria e daria a patinha a ela por livre e espontânea vontade. Vingava um pouco a estabilidade comodista que talvez só eu atribuísse àquela relação. Esquecia a recente descoberta de que ela se encontrava com o amiguinho distante em vários fins de domingo, depois de sair lá de casa, para falar de mim e se livrar do peso da monogamia que eu lhe impus sem perceber. Válvula de escape que eu secretamente admiro nela, de uma inteligência emocional que nunca passei perto de ter, cego como fico quando estou atordoado com a ideia de pertencer a alguém ou a algo.
Laura sempre repetia a teoria de que, mais cedo ou mais tarde, nos entediaríamos. Essa era uma das suas infinitas teorias, que ela ia desenvolvendo ou repetindo no meio de uma conversa séria, como se tivesse mil e duas premissas e histórias amorosas que a confirmassem e validassem. Tinha também a teoria de que os relacionamentos estão sempre prestes a acabar, e nem por isso a gente podia se desesperar, senão aguava o bom do amor. Ela dizia assim mesmo, nessas palavras. E, ainda, a teoria de que o que vale é ter o mínimo para viver, ocupar-se das próprias coisas e estar bem consigo. Todas as teorias que a preservavam de mergulhar intensamente no que quer que estivéssemos construindo em todas aquelas idas e vindas, e que me fazem reflexivo sobre ter desencadeado a cólera daquele último dia, noto agora.
Hoje faz um mês que acabou. Precisamente. Sou bom com datas. Afastado o véu da romantização de sua figura, tenho aprendido tanto com a ideia que me sobrou a respeito dela e de nós. Sobre quem quero ter, o que quero ser, e principalmente o que não quero. Por outro lado, ainda sinto uma necessidade leal de comunicá-la dos meus afazeres diários, contar a ela do trabalho e do que as pessoas que encontro no elevador desse novo prédio têm me provocado, compartilhar com ela coisas que, seguramente, ela não quer nem saber.
Voltei de viagem sozinho, depois de um fim de semana e do dia de segunda-feira relativamente satisfatórios, no litoral, quase sem pensar nos meus dramas mais ou menos recentes. O mais romântico dos homens consegue se distrair se se detém por algum tempo em porções fartas de pares de peito envoltos em biquínis de cores extravagantes, bebendo cerveja à beira-mar. Torrado de sol e com o nariz descascando, cantarolava pela rodovia um álbum inteiro do Pearl Jam. A minha contribuição para o espetáculo consistia em nãnããnãns e batidas ritmadas no volante. 
A certa altura, começou a tocar Black, uma das únicas que eu sei a letra, já que não sou grande fã. Quando Eddie Vedder sugeriu Tattooed all I see, all that I am and all that I'll be... passou um caminhão. Em cima escrito: Laura. Eu não creria se não estivesse lá: um letreiro enorme numa fonte branca e cursiva. Laura-mãe, Laura-irmã, Laura-filha? Eu não sabia. Do que tinha certeza é que sucumbiria à tentação de reviver a minha Laura assim que chegasse em casa, enquanto relia mentalmente, atônito, o que me dizia aquele painel. Não no para-choque, não numa tatuagem discreta num lugar escondido. O desgraçado pôs a mulher ali, como que na testa, para quem quisesse ver e para quem não quisesse. Talvez tenha cometido o mesmo erro que eu.
Neste fim de feriado, vou decupando novamente o trauma e a delícia que aquela mulher me provocou, muito mais indelével do que qualquer um possa supor. Começo de peito estufado, orgulhoso em dizer que passei três dias quase inteiros sem pensar ou escrever sobre Laura neste diário póstumo do que não sublimei a tempo. Depois vou minguando.
Não é virtude orgulhar-se de ignorá-la, porque escrever sobre me desonera de não vivê-la. Registrar o vento de qualquer geografia, litorânea ou não, varrendo os dias do calendário é ir digerindo que, mesmo que passe, Laura entalhou marcos na pedra fundamental sobre a qual sou construído. Então, assumo mais uma vez a condição de Caminha das expedições dela ao meu córtex.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Eco [2]

Este é o segundo texto de uma espécie de série.
O primeiro, se quiser, você pode ler clicando aqui.

Laura, começo escrevendo como se fosse uma carta. Teu nome primeiro, como me vinha quase todas as manhãs: Laura. Curto, sonoro. Em duas sílabas, que de hiato já basta o que há entre nós. E então uma vírgula, um suspiro de alívio, um "apesar de" para que todo o resto que move o meu mundo se ponha a girar.
Hoje acordei mais cedo que o habitual, querendo antecipar o fim desta história de amor às memórias por escrito. É a nossa, tu sabes. É o nosso, tu sabes. São as nossas, tu sabes. Ou pelo menos tem a ver conosco. É uma versão romantizada de nós, para que não encalhe na prateleira das livrarias, como veio a encalhar nosso amor.
Amor. Digo esta palavra e coro de vergonha. Também tem me ocorrido com o verbo "sentir". Um homem feito como eu, com tantas preocupações cotidianas com as quais me ocupar, escrevendo sobre uma história que acabou. Parece piada. Pior: parece fraqueza. Que ideia de amor terá quem me ler? Oras, finjo mesmo que estou conversando contigo, tantas vezes, que não me custa registrar a pergunta: foi amor, Laura? Sexo, amizade colorida, encontro de almas? Seja o que for, noto agora que nunca teve vocação para durar, na prática. O quanto durou foi pela nossa insistência na metafísica. No lirismo super bonder que nos grudou como gruda os dedos. Achamos sempre que nunca mais vai soltar e dois dias depois já não há vestígio.
Quando interrompi o primeiro gole de café para atender à porta, a disposição de por fim a estes escritos cedeu. Chegaram os últimos móveis, junto com eles o armário. Aquele que tu organizavas enquanto eu cozinhava as tuas dezenas de pratos preferidos, como que para agradecer e ajudar a organizar um pouco a minha vida. Coisa besta, mas foi um soco no estômago.
Eu vou fazer um relicário, Laura. Como na música do Nando. Não vou jogar fora estas coisas sobre nós. Mesmo que não tenha sido amor. Mesmo que não tenha durado o quanto achávamos que ia, apaixonados que estávamos. Mesmo que os ecos voltem mais alto do que o que dissemos e vivemos, dadas as minhas hipérboles. Cada memória merece ser novamente gritada nesta prosa. Vou compilá-las, catalogá-las aos poucos, dobrando cada aresta para que caibam na estante.
Quando terminaram de descarregar e montar tudo, fui assinar o recibo de entrega e, por pouco, não me despedi com um "Todo teu,". Cheguei a escrever o T maiúsculo, uma grafia cuidadosa. E depois risquei, claro. O funcionário da empresa de mudança ia rir para diabo da minha cara.
Sem muito esforço, recordei de um bilhete que te escrevi. Deve estar no fundo da gaveta reservada para as críticas. Eu não fiz muitas, mas sou prolixo até nas notas de rodapé. No bilhete, que eu escrevia para agradecer aquela sexta-feira incrível, fazendo graça com a tua inaptidão para a cozinha e a maestria em lavar a louça, eu dizia que a tua tia Ester devia arranjar um novo marido e parar de implicar conosco. Arrematei com qualquer coisa que sugeria que ela era mal amada.
Faltou-me o tato, não era bem o que deveria ter dito. Primeiro que, com um nome tão bonito, que eu inclusive poria numa filha, má pessoa tua tia não podia ser. Efetivamente não era, tirando o fundamentalismo religioso. Segundo que homem não ajeita a vida de mulher nenhuma, só bagunça.
Se vocês ainda tiverem contato, diga a ela que quando o meu olho cruzou com o teu aquela fração de segundo era um felizes para sempre. Como nos contos de fada. E que também por isso não precisávamos casar para transar. Que a gente não sabia se era uma promessa divina se realizando, força do acaso ou de sorte. Então apenas aceitava. Diga, mais do que o óbvio - que já ultrapassamos o primeiro milênio do mundo cristão e algumas coisas ficaram por lá -, que mão dada era pouco para o quanto eu queria ser teu. Inteiro.
Conte a ela que o amor nunca é pecado e que, se ocorre de ser, já nasce perdoado.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Epitáfio de indigente

"Gosto de você" é quase inexpressivo. A gente gosta de comida, de filme, de cor, não de gente. "Dependo de você", por outro lado, nem consigo pronunciar, tendo ainda casa materna, comida na mesa, conta bancária de quatro dígitos e vivendo no século XXI. "Venero você" esbarra no meu feminismo. Lá sou eu mulher de venerar alguém? Falta-me o senso hierárquico, o temor reverencial para com a autoridade do outro. "Adoro você" tem uma direção: a santidade. Deus que me livre de querer beatificar um relacionamento, qualquer que seja ele. "Simpatizo com você"? Casimiro que me perdoe, mas também não dá conta.
Atravesso essa dificuldade com paixões arrebatadoras: tudo parece tão insuficiente para expressar. E "amo você" - representação máxima do que é sentir muito, para uma pessoa que não se detém na reflexão - pressupõe um peso. Há tudo que já foi escrito lido dito cantado dirigido interpretado antes sobre o amor. E a referência filial, certeira desde que nascemos. E todas as vezes que eu mesma já disse e escrevi amar antes. Em absoluto, nenhuma nunca se confunde.
O que eu sinto é então um epitáfio de indigente. Que diz muito, sem palavra alguma. Careço de habilidade para redigir os rótulos. Todas as vezes em que fica difícil me despedir por falta de predicado para o que está sendo para mim é porque estou, ao lado do outro, inquietantemente em minha própria companhia.
Confundi-lo comigo é o melhor elogio que nos posso fazer. 

domingo, 27 de setembro de 2015

Eco

A tentativa de reviver uma memória não passa de um eco e eu sei disso. Não é uma segunda resposta aos nossos dilemas pessoais, proferida pelo autor, a amante quase esquecida ou qualquer pessoa que tenha proporcionado a sensação original, mas uma repetição mecânica, em condições específicas, do que já foi dito, lido ou vivido algum dia, que dessa vez poderá ser interpretado de modo diferente. Um sentido para o presente, diretamente de um passado sobre o qual, enquanto estava sendo, não se precisava pensar muito a respeito.
As memórias servem para reorganizar o que passou de um modo nem sempre conforme e nem sempre cronológico. Por sorte, sempre haverá o recurso de olhar para trás e, numa esperança enfadonha que nos foi legada pelo empirismo, vasculhar a recordação em busca de alguma experiência que possa servir para influenciar a tomada de decisões no tempo presente. Há quem diga que as coisas que vivenciamos nos impulsionam, mesmo de maneira tácita e sem reflexões manifestas, às escolhas. A maioria de nós nunca terá certeza.
Eu posso fingir que não o quanto quiser, Laura, mas eu lembro com exatidão das nossas idas ao terraço do teu prédio. Os teus cabelos desgrenhados e escuros caídos sobre os ombros e as tuas perguntas malucas sobre as estrelas, o horóscopo e a minha disposição para insistir. Como se eu fosse um cientista maluco, meio cigano, capaz de te dar uma resposta precisa sobre o futuro. Como se desse para adivinhar o momento em que o tédio nos bateria à porta, para fugir primeiro, para não sofrer ou vitimizar quando a euforia acabasse. Tu olhavas para os lados, trêfega, debruçada no parapeito, procurando algo que pudesse te surpreender na cidade fria e escurecida. Um carro em alta velocidade, uma árvore antiga, quem sabe um mendigo ou um casal sexagenário. E eu só podia assistir ao espetáculo da tua frivolidade intensa e profunda – ninguém mais sabe ser frívola, intensa e profunda ao mesmo tempo como tu.
Falseavas a certeza de que aquele momento estava sendo infinito na minha companhia, fingindo ignorar a minha presença, sem me olhar nos olhos, para aquele instante não ser derruído por uma interrupção inesperada de realidade: nós dois, sempre tão sozinhos, ensaiando um par.
E então tu sorrias calma, sempre um pouco inquieta e um pouco confusa, sem se fazer entender. A mão tocava a minha e era familiar a sensação universal de estar consternado por aquele detalhe, aquele momento no terraço de um prédio velho do sul do mundo. Um terraço que, sozinho, não teria representado coisa alguma. Eu até hoje não entendo como aprendias uma palavra em libras, um símbolo em japonês, um poema imenso inteiro de cor, uma maneira sempre nova de me contar que estava sendo leve e tu desejavas estar ali, ao meu lado, até quando parecia irreal. E esquecias tão rápido, que se te pedia para repetir, já não sabias. Como que para dar espaço a uma surpresa nova. 
Aquilo, aquela pequena referência, era sempre uma verdade em ti. Uma verdade que, sem culpa nenhuma, nós sabíamos que acabava no capítulo seguinte. Fingias que a vida era descomplicada, sem parar de repetir todas aquelas coisas poéticas e dolorosas que já fomos e vivemos e nos fizeram chegar até ali, subir a escada precária de ferro, sujar as mãos, enferrujar o teu vestido rendado naquela aventura delicada e improvável.
Enlouquecido e entusiasmado, Laura, posso ser esmagado pela rotina, fatigado pelo álcool, embebido pela ternura de novos olhos castanhos, e jamais me desacompanha este rastro de te ler pela primeira vez, mais que uma vez e de diferentes e ternas formas, naquele terraço.
Eu só queria estar onde estivesse essa calma que de súbito se esvai agora, na forma de uma taquicardia, adivinhando este céu chuvoso de setembro da penumbra do meu quarto. Vou celebrando o que éramos, como se ter vivido aqueles momentos ainda fizesse parte do que sou agora.
Não me confesso nostálgico, Laura. Não posso generalizar esta sensação que só tu e os livros me causam. Repito o teu nome sem pensar muito a respeito, enquanto escrevo. Não quero a culpa de não te repetir concretamente, então te chamo, pra ver se tu vens, se tu voltas. Se ressurges, sempre inédita, como antes.
Depois de duas semanas sentando todos os dias na cadeira de frente para a escrivaninha e as janelas de madeira de moldura branca, sem sucesso, e finalmente agora, conseguindo confessar, como se alguém um dia pudesse ler, parece que pode funcionar: talvez eu venha derretendo as minhas geleiras.
Mais do que para refletir sobre tudo que já vivi, mudei de apartamento para me sentir capaz de mudar minha vida. Para me sentir capaz de reescrevê-la e inspirar alguma identificação. Em ti, por ti, quem sabe. Há uma espécie de matéria que constitui todos os românticos, neste território límbico chamado fim de um domingo.
Minutos antes fechei o livro com a sensação de abandono, depois de terminá-lo. Quantos destes já se foram? Dou conta de elencar, caso me esforce, a dúzia de clássicos que qualquer um com pouca presença de espírito teria orgulho de se vangloriar que leu, mas, no geral, não sei quantos deles – desde os mais desimportantes – já me passaram pelas mãos. Quantos já me agitaram os instintos e entre uma página e outra fizeram com que eu pensasse melhor sobre qualquer certeza que parecia absoluta, depois foram esquecidos? Não é possível reviver o ineditismo de um livro. Muito provavelmente, ainda que o releia o leitor não experimentará as mesmas sensações da primeira vez e se surpreenderá com trechos novos, antes despercebidos. Nunca a mesma surpresa novamente. Depois da primeira leitura, cada experiência sensorial que foi provocada não ressurge senão como um eco.
E o que eu digo sobre memórias e ecos, Laura, na verdade não passa de uma especulação. Eu quero dizer que reverberas no meu destino. Eu especulo o que continuas sendo em mim depois de nos despedirmos, mas não cravo resposta. Então dialogo contigo à distância, em segredo, em silêncio, enquanto olho janela afora como se estivesse, também eu, olhando para o fundo dos teus olhos escuros, enquanto olhas para o mundo debruçada no parapeito daquele terraço.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Ninguém se salva de si

Vale mais o que fazemos do que nos fizeram do que o que nos fizeram. Eu digo isso para parafrasear Sartre irresponsavelmente, é claro, mas muito mais para me catequizar no acerto.
É que eu tenho percebido nas pequenas coisas, como ir almoçar sozinha e não sentir solidão alguma na minha companhia, que as coisas podem ser boas apesar de. Encho o prato de tomate, cenoura e alface e fico contente ainda que ninguém aplauda. Sento de costas para quem chega, não atento para, não desperto ou provoco um olhar sequer, senão do garçom e dos senhores do caixa, porque lhes é ofício. E mesmo quando passo despercebida tenho estado em paz, a alma sorrindo. Sem deixar de aproveitar o que me é dado.
Bate um vento, a basculante fecha num susto. Eu bato os talheres, a criança ao lado chora, o velho esboça um bravejo. Aquilo, é claro, toca cada um de um jeito. Como rigorosamente tudo no mundo.
É por isso que não vale deixar o mar revolto de fora perturbar a maré calma de dentro. No fim do dia é cada um por si. Mesmo para quem dorme com as pernas entrelaçadas, no fim do dia é cada qual com seu cada qual. Se eu morresse amanhã - e os deuses que me livrem, porque sabem que quero viver mais umas oito décadas - uma lição bonita eu já teria aprendido: já que ninguém se salva de si, é útil inventar, a cada dia, um jeito bom de conviver consigo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Tramear


Estendo a mão e toco. A última falange de um dedo, os outros, as outras, o dorso, a palma, os movimentos suaves. O toque é um mergulho e aproveito a lentidão do sono para também me esquecer de respirar. Eu tão invasiva e tão aberta e terna, encho os pulmões, estendo a mão e toco. Um toque de camaleoa, para decorar a cor. Elogiá-la em silêncio. Para confirmar a mesma temperatura: a pele quente como o primeiro raio de sol da manhã. Para tramear os cabelos e imitar o cheiro... Para despir um sonho bom.
O toque se avizinha e me adivinha. Sim, o habitat me convida. É em segundos como este que planejo cuidadosamente os discursos e ensaio um tom de surpresa para quando forem repetidos. Eu quero me confundir sempre ali, mas não confesso verbalmente e nem preciso. As referências que o digam por mim.
Permito e aceito e desejo que os meus frontes de guerra sejam transpostos de um jeito arrasadoramente doce. Incansavelmente adorável. Desarmo as defesas e deixo o desvario ir se acomodando, penetrado no meu tom de independência e liberdade, que já nem faz mais sentido, já que, ao que parece, agora a vida depende daquele gesto. Constante, certeiro e retilíneo. Se eu não tocar, não serei eu, tão uniforme, sendo invadida. Não serei eu.
Quando dei para admitir, um impulso incontrolável e difuso já tinha se listrado em mim. Foi como ser feliz de novo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Balé


Dobro as pernas como borboleta, a espinha ereta, o olhar fixo. O cabelo solto, as mãos sem precisão. Faz frio, eu aqueço para um balé de perfeições insuspeitadas. A boca entreaberta suplicando o sopro de vida. Não me esforço para disfarçar o encantamento. Cada detalhe atordoa. Não sei se os olhares se cruzam ou se os tatos se tocam, quando sou toda audição. O som distrai e invade. É um consolo e uma descoberta: a cabeça acenando estranho, em sincronia, em um tremelique lento e ritmado. Essa ciranda não para e de repente acontece. Ele se conecta com algo que há de profundo em mim e que agora, uma vez mais, eu conheço. Vai valsando para dentro e solitário enquanto belisca as cordas. O som saindo, ensurdecedor, como que por si, o formato do rosto e os cabelos desalinhados como o meu coração costuma estar. Uma coincidência, já não estou mais ali. A gente agora dança em segredo nos grandes salões, mas ninguém vê. Ele inventa um jeito de estar girando que acomoda o meu desejo anti-intuitivo e tortura os meus acasos. Mão na cintura, a outra em riste. Aquilo tudo toca, dá uma vertigem. Só o que temos é aquele instante. O casamento arranjado dá mais romantismo para a fuga, sempre se lê a respeito. Ninguém suspeita, mas é um encontro de almas. Praticamente em segredo, sou transportada para outras eras. Convivo em par com todos os amantes do mundo. Olho fundo nos olhos e pertenço àquele lugar e àquele momento como pertencem, mornas, as lembranças eventuais de uma saudade esquecida. Aplaudo o que acabamos de ser. Ele se curva para agradecer, demorado, e não se sabe se está contente ou se não se envaidece com a aprovação. Mas sorrimos. Como se sorrir na companhia reforçasse uma intimidade que é instantânea. Eu sei e ele sabe que o amor à arte é um narcisismo, já que é sempre sobre nós que ela diz algo e é sempre, involuntariamente, sobre o que nos diz, em particular. Eu vou embora, fugidia, quase sem forças para encontrá-lo, distante, nos sonhos, sem nunca mais vê-lo. Dorme ali um romance escondido que não se desvela, uma tórrida-ingênua-romântica-ridiculamente-pretensiosa paixão que não se leva a efeito como rezam os manuais. Levo comigo uma paz de espírito que me adormece tranquila e me atiça para a vida. Vão se esvaindo as pontes, enquanto caminhamos sobre elas. Não há retorno possível, por isso é que estes momentos são raros. Se parar para pensar, uma vida nunca cabe inteiramente na outra. Mas sobra e há - que bom que há - o assombro, uma vontade, o balé, a valsa, uma certeza. E o intraduzível.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Como cantiga

Hoje eu só queria chorar a tua dor e te perdoar por todas as minhas incompreensões. Ficar em posição fetal, calada, compadecendo de ti em segredo e te oferecendo a minha sanidade diante do mundo. Dizendo, como cantiga pra ninar a criança, por uma metáfora, que ninguém merece ser punido por parecer frágil. Que ninguém merece parecer frágil por amar demais e estar perto, e a gente sabe disso. Eu só queria que o meu asco não fosse dúvida, que a minha surpresa não fosse pavor, que o meu pavor não fosse medo, que o meu medo não fosse repulsa. Que a minha repulsa não tivesse motivo pra se repetir. Que a vida te fosse diferente, nesse particular, porque você merece. E porque não merece. Tomara que saiba. Eu rezo aos deuses que saiba.
Hoje eu só queria purgar teu desconsolo e a tua lembrança e te livrar do peso sangrando contigo, em silêncio, num abraço apertado sem palavra alguma.
Hoje eu só queria chorar a tua dor.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Inconfissões

Gargalho jogando a cabeça pra trás, como a vó Cecília, e acho uma delícia. Não gosto de usar ponto de exclamação quando a frase termina com as letras I ou L. Nunca assisti a um filme completo da trilogia Star Wars, porque sinto sono. Sou hipocondríaca, embora deteste tomar remédios. Quando pinto as unhas de cores que não as quentes, parece-me que estão sempre mal feitas. No dia seguinte ao de uma noitada de salto alto, o pé calejado é um troféu contra o piso gelado. Adio conversas ao telefone enquanto tenho outras tarefas possíveis. Quando eu durmo de bruços, quase sempre ergo as pernas do joelho pra baixo. Invariavelmente, eu ronco. Meu cabelo cai mais do que é normal. Contabilizo derrotas na esperança de me tornar invencível. Prefiro me render e gostar de personagens egocêntricos do que detestá-los porque me enxergo neles. Também por isso adoro os vilões. Conservo um tom de empáfia todo especial pra quando me sinto ameaçada ou pra revidar quando ralham comigo sem necessidade. Às vezes, ensaio diálogos em frente ao espelho mesmo sabendo que o interlocutor não vai seguir o roteiro. E, finalmente, tenho um estilo de vida onde todas essas assertivas estão contidas.
Há muitas coisas sobre mim que, por um motivo ou por outro, não confesso pra início de conversa, em entrevistas de emprego ou na fila do banco. Não porque as rejeito segundo os padrões éticos, nem porque não me orgulho delas, mas porque não quero ser desmascarada com idiossincrasias tão banais e inexplicáveis, até mesmo pra mim. Só quando alguém percebe é que vem o confronto: eu sou! Estou sendo idiossincraticamente banal. A gargalhada da vó Cecília, a paranoia com a pontuação, o ronco.
Sem me esforçar ainda sinto o cheiro, de encrenca, e reprovo o gosto. Sem muito esforço, percebo que nada será como antes e ainda não sei se realmente comemoro ou lamento a máxima. A peculiaridade do outro soca na cara de quem chega, produto de tudo que ele é e viveu, e sob pena de ser injusto a gente precisa olhar, quando menos espera, pro próprio rabo em vez de apontar o dedo. Pro quanto a nossa singularidade nos é cara, ainda que ela confronte ou agrida a do outro. Precisa refletir quão elásticas não devem ou devem ser as concessões pra possibilitar a convivência.
No cinema, protagonista esbarra em alguém e aquele momento sutil de depois que os primeiros livros foram recolhidos do chão determina o felizes para sempre. Na vida real, a gente se depara com uma porção de inconfissões, depois do primeiro capítulo. Todas fazem parte de um todo que podemos tranquilamente desgostar e largar, porque não nos é cópia fiel. Ou usar de antítese.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

No que é essencial

Quando eu espero o dia seguinte chegar pra revidar uma ofensa sóbria do impulso, sou ela. Quando eu ergo a cabeça, altiva, depois de uma ocasião em que o caráter de alguém contrasta com o meu, sou ele. Quando eu me sinto nascida para o que faço, sou ela. Quando o meu humor é ágil e perspicaz, sou ele. Quando defendo algo em que acredito, sou ela. Quando defendo alguém em que acredito, sou ele. Quando eu ponho os pingos nos is, sou ela. Quando sou generosa e estendo a mão, sou ele. Quando dou o braço a torcer porque prefiro estar em paz do que ter razão, sou ela. Quando cumpro à risca uma promessa, sou ele. Quando eu me mantenho forte em nome do amor que sinto por alguém, sou ela. Quando me faltam palavras para dizer meu amor e eu o traduzo com gestos, sou ele.
Quando sou eu, sou sempre ambos. Meus pais fizeram por mim o que de melhor poderiam: deixaram que eu tivesse os meus próprios defeitos. No que é essencial, imprimiram-se em mim.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Sorri e vive

Um pragmático age, refreia e espera o confete. Sua racionalidade coage e manipula a realidade para que caiba em uma premissa da física, uma regra geral, uma verdade, um preceito lógico e moral. Um pragmático se preocupa com o que vai parecer, certo e errado como adversários. O artista só aparece e atropela.
Um artista não pede licença para fazer suas escolhas. Ninguém vive a dor e a delícia por ele. E ele não mede a dor de antemão. Para um artista, a aprovação alheia é, no mais das vezes, apenas a aprovação alheia. Boa, mas prescindível. O artista pode errar cem vezes, pois se perdoará, insistindo cento e uma.
Um pragmático não se converte em artista da noite para o dia. Não se aprende. Um artista se permite, e permitir-se é sempre um risco. Requer coragem. A arte é, por excelência. O pragmático tentará dissecar a alma humana, enquanto um artista a reflete e toca. O toque é lento, fundo, raro, intenso, imediato. O pragmático se debate, porque não compreende - sobretudo não compreende, embora demasiado tente - a complexidade. Um artista também não, mas se conforma. Faz parte. Sabe sempre que tudo passa, e um carrossel passa, repetidamente, pelo mesmo lugar, e a criança não sorri menos, apenas solta os braços e sente que voa.
O artista vive lutos excruciantes e aprende com eles, mas em pouco tempo os pesos não pesam mais. O pragmático se concentra no fardo, até se confundir com ele. Suas memórias repetem os desacertos, preocupa-se com os mecanismos. O artista só engrena, samba, empresta e doa. Um pragmático cobra caro. Um pragmático nunca trombará com um artista sem repreendê-lo.
O artista provoca um riso constante e o mundo enternece com a cara pintada e bendita. Um pragmático pragueja. O pragmático espera que o amor encaixe, feito tetris. O artista, inteiro, transborda e pede mais.
Mãos dadas com a intensidade, abre-se o mundo, levitam os caminhos. O artista desfila na avenida da vida, braços abertos entoando a canção, o coração repleto. E o pragmático tenta, em vão, compreender este mistério. O artista, não. Sorri e vive.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Contemplação

Olho pra baixo, as unhas sem esmalte, os pés bem juntos. A água do chuveiro escorre morna pelas pernas e varre os dedos e contorna o chão até o ralo. Ergo a cabeça e uma gota brota na testa, contorna o nariz e amacia toda a existência. A vida não é perfeita. Só é boa. A cada cem frivolidades, uma dessas pequenas epifanias. Uma pequena pausa no dínamo dos dias. Uma inércia que suspira.

A contemplação é o maior dos milagres.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Por dentro

"[...] Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
[...] E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso"
(Caetano Veloso)

Tentei te sensibilizar, declarei o afeto depois de tudo acabar. Injustiça a tua, amor. Mesmo longe serás fogo, fogo, fogo. Coisa assim não acaba cedo, mulher. Vejo arder em ti algo que não compreendo, mulher. Eu sei que sentes tudo e estás sentindo algo inconsequentemente e violentamente agora. Não sei o quê e tudo se confunde. Tu sabes? Cadê aqueles instantes onde alucinadamente pensávamos que era tudo empatia e sincronia? Por que tão verdadeira? Por que palavras tão duras? Qual das coisas que não fiz te fez partir? Serás sempre o que quiser, mulher. Isso me ofende e me escondo, menino, nas asas da vida. Tu partes, encolho. Essa ideia de amor aprisiona. Como é que vais embora com esse coração tão leve, se dizes amar? Baixa a cabeça e cala. Não atacas, não revidas, não tentas me atingir. Segue firme. Que humildade é essa, mulher. Quero estrafego: maldizer o nosso lar, sujar teu nome, te humilhar. Só sei sentir assim. Vê de quanta atenção eu preciso, nota a ferida aberta arder e me explica de onde é que surgiu essa certeza tão grande de que não somos um par. O que é que eu faço se achei que dependia, Narciso, da tua coragem e valentia pra me ver no espelho? É outra boca? Outro corpo, outro coração? Não? Como assim não, mulher. Mas que raios, mulher! Sem me trair, sem duvidar, sem pestanejar, compreendendo tanto de mim e nada de nós. Acordaste hoje, fincaste o pé na estrada e nunca mais. Bruxa na fogueira, máscara caída, algoz da profana inquisição. O diabo suspira com o trabalho que tem a cada vez que respiras.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Impreciso


No banco ao lado e no que transpõe o corredor, as senhoras conversam sobre economia e política. Me encolho no meu banco, ombros retraídos. Parece poeira de vidro entrando pelos poros. Não era eu que queria conversar sobre coisas diferentes ao longo da vida? São oito da manhã de uma quarta-feira que ainda não decidiu se será de sol ou de nuvem cinza. Preciso mesmo dar a minha opinião? Decidir o que quero para o futuro do Brasil? Falar sobre a Dilma e os meses de um ano que usamos pra pagar os impostos, parlamentarismo e todo o mais? Ensaio o discurso que ouvi toda a vida, para agradá-las, mas não abro a boca. Não quero agradar ninguém. Na verdade, estou pensando micro. Na praticidade que quero ter para conviver sendo chefe de estado e de governo de mim. Cuidar das relações e das decisões como se fosse redutível, incansável, pragmática. Preciso ser todas essas coisas? Preciso ocupar o tempo com coisas úteis e com o bem-estar geral da nação? Preciso fazer da vida um case? O que eu gosto e o que eu finjo que gosto, porque esperam isso de mim? Quero mesmo essa beatificação dos dias? Ser canonizada porque sou uma boa menina? Estou perdendo tempo? Posso me permitir ir e voltar com a maré? Eu tô cansada. Cansada de não saber, de correr atrás do prejuízo. Dessa busca que não acaba. Não quero mais ser a melhor aluna da sala. Melhor: não quero o peso de sentir que preciso sê-lo. Preciso? Precisar, que verbo ingrato. O que eu fiz de mim, que ansiedade é essa? Estaria leve, não fosse estar sempre precisando. Desembarco e os saltos, vermelhos, sincronizam com alguma máquina usada para construção perto dali. Preciso de óculos de grau, de um notebook, de um celular menos anacrônico, para atender às demandas da vida de solteira. Preciso? Invento essas desculpas para ter algum horizonte. Para me lembrar sempre que exagero no contato com as pessoas e no desespero de compreendê-las, correspondê-las, ser correspondida. Quero ficar ali, no parado. Sem olhar para o celular que não toca, sem a pressa que atrasa os dias. Encolhida em silêncio, sem precisar de nada e de ninguém. As vitrines estão cheias de botas na promoção e, em algumas delas, já há biquínis e mini-saias, em preços exorbitantes. O tempo não para. "Você precisa disso?" - a vida exige resposta, a pergunta faz eco na minha cabeça. Que tamanho a necessidade precisa ter para que se precise? Quanto de perdão há em mim e quanto de desespero? Eu quero um beijo de amor ou um tapa na cara, que me acorde de vez? Quanto da minha vida é marketing? Quanto de repetição, requentando velhos hábitos e velhas pessoas? Quanto de desespero e quanto de atropelo? Sei o que não quero, mas quero o impreciso. Isso é um peso e um alívio.

sábado, 15 de agosto de 2015

Comichão


O que no sangue chama o pernilongo? A cor, o cheiro ou o mistério? O que por trás da pele é tão irresistível? Essa atração instintiva é extrato perfeito do enigma da cisma.
Um mosquito pica o meu dedo do pé. É uma picada minúscula e incômoda. Eu roço o pé no cobertor e é como se recuperasse a vontade de viver por uns segundos, já que nunca fui das que deixam um inseto pousar no nariz ou onde quer sem me agitar os sentidos. Afinal, mais um ser humano como tantos na face da terra: eu sinto muito, demasiado. Eu sinto tudo. E reconheço o quanto arde o que não deve arder. A manchinha rosada que aparece uns segundos depois do contato é uma vergonha ao contrário.
Dedo do pé. Quando um mosquito assim pica a gente, é sempre o meio inalcançável das costas transportado para os recantos do corpo. A gente se debate, mas não faz mais que espantá-lo ou colar o próprio sangue na parede. Abandona uma parte de si sem o mosquito consultar a gente, pedir licença ou deixar credenciais. O despertar para o tapa é sempre tardio. A picada não volta atrás. Arde o comichão, não há antídoto. Esfrego álcool, um creminho perfumado, mas ainda arde.
Eu não entendo esse comichão. Eu não entendo ou me conformo, mas reconheço a tranquilidade pela coceira que ela dá quando vai embora.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Não é você, somos nós.

Hoje eu vou escrever sobre pedra nos rins. Sim, é o segundo tema "patológico" em dois dias. Não, eu não estou com problema nos rins. O inferno astral não chega a tanto. Que eu saiba, só com gripe. Mas eu acho que o meu cérebro está com uma certa disposição pra essas metáforas ruins. Vai ser um desabafo, tá? Nada de uma pretensa vertente poética, como sempre, ou algo assim. É provável que eu leia esse texto em algumas semanas e sinta que estou dizendo a mesma coisa que ontem, mas com menos floreio. Se eu tivesse um vlog, seria uma conversa franca com a câmera. Mas eu tenho um blog. Porque é quando escrevo que sou inteira.


Há um tempo eu tive cálculo renal e é uma dor absurda. Não consigo lembrar exatamente quantos meses faz. Eu sinto necessidade de contar que essa dor surgiu do nada sempre que falo a respeito. Um dia eu acordei, manhã cedo, sentindo dor. Claro que do nada é modo de dizer. A pedra já estava lá, era produto de uma predisposição genética e do quanto de sal eu como. Como num cálculo matemático: os problemas nunca são só aquele problema específico, mas um conjunto de elementos problematizadores.
Parecia tudo bem comigo, exceto pela pedra que começou a se mover no canal. Mas então a pedra já estava lá desde antes, certo? Certo. Uma pedra assim não se forma em oito ou nove horas de sono, só que eu só me ative a ela quando perturbou. Pedra no rim dói muito. Dizem que mais que parto. A crise passou, mas eu me lembrei semanas do quanto me contorcia e do quanto era incômodo. Se me esforçasse, podia sentir o canal machucado um mês depois.
Eu gosto muito de sal. Eu acho que amo sal. Mesmo, de paixão. Borboletas no estômago. Quando eu vejo um saleiro na mesa eu fico contente (vai entender!?). Parece identificação de outras vidas. Contudo, absolutamente todos os dias depois da minha primeira crise de cólica de rim eu precisei fazer uma escolha. Porque eu amo sal, mas a minha razão sabe que eu posso criar novas pedras no rim. E que, quando resolve incomodar, pedra no rim dói pra caralho.
Quem me diz que eu preciso comer tudo insosso em nome da minha saúde não faz ideia do quanto o sal me faz falta. E quem me diz que eu devo comer sal o quanto quiser porque um dia morreremos todos não sabe o quanto dói a porcaria da crise de cólica de rim. E, todos os dias, ninguém pode fazer essa escolha por mim. Eu não acredito que deva problematizar as coisas mais do que elas já são problematizadas, mas ainda não aprendi quanto de razão e quanto de coração a gente deve empregar em cada coisa. Não acho mesmo que alguém saiba a medida ideal.

Não é você. Não sou eu. Somos nós: essa indecisão crônica a ser tomada entre o que nos machuca e sensibiliza. Essa necessidade de manter uma distância das emoções pra conseguir raciocinar. Essa necessidade de se deixar compadecer junto, pra não endurecer demais. Essa impossibilidade de apartar as dores e trancá-las, longe das expectativas. Essa dificuldade de viver o presente e não pensar no futuro, se foi o passado, o amor, o sal - e também as pedras e as dores - que nos trouxeram até aqui.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Catarro

Com toda razão, ninguém consegue falar sobre isso sem um mínimo grau de desconforto quando está à mesa. Não é algo de que os eruditos já tenham se ocupado em seus livros ou discos. Ninguém se sente apto para discursar a respeito quando o interlocutor faz cara de pena pelo nariz inchado ou de ojeriza, por todo o contexto. Mesmo quando alguém pergunta, chega a parecer falta de boas maneiras responder com sinceridade sobre o tema. A sua mãe se compadece, o pai dá tapinhas nas costas. Te levam à farmácia ou ao médico. Vai passar, querida. As amigas desejam melhoras, perguntam como você está, mas parece uma realidade paralela. Ninguém dá genuinamente a mínima para o catarro até ele aparecer na própria vida.
Todo mundo já teve catarro. A gente acorda um dia com um mal estar esquisito, sabe que algo não vai bem e, no dia seguinte, está com o nariz entupido ou tossindo os pulmões para fora. A cara deste tamanho. Lá está uma gripe daquelas e o maldito, congestionando tudo. Aos poucos, começa a soltar. A gente tosse e sente as postas amaldiçoadamente mais consistentes do que gostaríamos - nojentíssimas! - sobre a língua. Parece que as vísceras são constituídas de catarro.
Aquilo vai ter que sair dali. A gente quer cuspir tudo de uma vez, como quem faz uma limpeza à mão por dentro das vias aéreas, mas não pode, são as regras do jogo. Engole. Quer cuspir. O negócio tá ali. Só que todo mundo foi ensinado sobre o quanto isso é, digamos, antiestético. Não pega bem. Tosse de novo. Corre para o banheiro, uma coceira na garganta. Vem mais por aí. Tenho certeza que você está com cara de espanto ou de aversão por eu escrever a respeito, mas já sentiu tudo isso com a mesma impressão de nunca-mais-vai-passar que eu estou sentindo agora.
Falar sobre, de qualquer maneira, não traduz o sentimento. É por isso que a gente costuma reclamar do mal estar, das dores de cabeça, do tempo, da vida, mas não cita o catarro especificamente. Só faz sentido para quem está, naquele exato instante, passando pela experiência. Eu poderia passar horas buscando eufemismos, mas... Catarro é só aquela substância amarela, esverdeada, que vem não se sabe por quê. Ninguém lida bem com catarro. E ninguém, absolutamente ninguém, faz por merecer. O catarro nos põe à frente de algumas das maiores dificuldades da vida: deixar que o tempo passe e, neste meio tempo, lidar com o que acreditamos não merecer. Só percebemos que todo mundo passa por isso e sobrevive e que a vida não tem muito a ver com merecimento quando ele vai embora. 
Ocorre-me agora que o catarro (aquele mesmo de sempre, que sai dos nossos narizes desde crianças até a velhice) serve para nos dar a medida exata do quanto as próprias tragédias parecem grandiosas. Ou, quem sabe, para nos conectar por uma ou duas semanas ao esmagador desconforto coletivo que, por um motivo ou por outro, sentiremos todos durante a vida.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Na medida


Entro no Café quase todos os dias, sempre pontualmente, às 08h25min. É o tempo de descer no terminal e vir andando em direção ao escritório. Não importa que esteja de salto ou no raso: minhas pernas habituaram ao ritmo.
As atendentes me sorriem. Uma ou duas, pela incredulidade, ainda me perguntam se o pedido é o mesmo. Todas as outras já tomam o saquinho do pão de queijo nas mãos quando me veem apontar pela porta. Não somente o pedido, o ritual é sempre o mesmo: vou até o balcão, miro os pães de queijo, falo alguma amenidade. Se estou feliz, são amenidades felizes. Depois me dirijo ao caixa. Se eu tenho só notas graúdas, elas reclamam que vou deixá-las sem troco, observam enquanto eu ajeito as notas do troco todas por ordem e tamanho pra por na carteira, sorriem mais uma vez (às vezes fazem um comentário qualquer como "me arruma que eu te arrumo, né?", em relação ao meu cuidado com o dinheiro) e me deixam ir. Se tenho trocado, sorriem agradecidas e me deixam ir.
Hoje eu não disse amenidade nenhuma e a moça do caixa foi demasiado solícita: perguntou se tudo ia bem comigo. Na medida do possível, eu digo. Aquilo é um não. Aquilo com certeza é um não. Aquilo é um não mais certeiro que o meu pão de queijo matinal. Não é tudo que vai bem comigo. E ela visivelmente não sabe o que responder. Não sabe se me pergunta o que houve - se é que temos intimidade para isso, depois de tanto colesterol adquirido - ou se segura a minha mão enquanto alcança a nota de dois, dizendo genericamente que vai passar.
Tenho narrado a vida como um roteiro policial há algumas semanas, minha senhora. Sei o quanto isso parece estranho, mas é como se não pudesse deter. Metaforicamente, dessa vez foi uma espécie de emboscada. Ele jura que espreitava me esperando para uma surpresa, eu juro que estava prestes a ser morta. Pisquei os olhos e estava lá, apontando as minhas flechas, as minhas pedras, as minhas armas, afinal, em legítima defesa. Sei todos os passos do quanto seria ferida de cor. Então não, tudo não vai bem comigo. Não fez sentido, porque estou ferida de qualquer jeito. E tendo que caminhar, de qualquer jeito. Ninguém mais aguenta ouvir.
Estamos em silêncio e a senhora do caixa um minuto inteiro parada, me vendo sair, sem saber se o pão de queijo de ontem foi indigesto, se algo empedrou entre as minhas costelas, dando um peso perto do coração, ou se estou delirando. Paro embaixo da soleira da porta de vidro e viro em direção a ela. Sorrio. É a rotina. E é o que mais fazemos ali, no fim das contas. Sorrimos umas para as outras como se perguntar se tudo vai bem bastasse para que tudo vá bem.

Depois do café da manhã, cogitei me ocupar com o impossível.

sábado, 25 de julho de 2015

O Batman não voa


Desci atrasada e sem lentes para o aniversário de três anos do Érick. Minha mãe já havia entregado o nosso presente: uma máscara e uma capa do Batman. Quando cheguei, cansado do corre corre das crianças, veio até mim como quem tem uma ideia genial, pedindo que pusesse a capa nele. Enquanto as senhoras da sala comentavam, aos cochichos, dos perigos de que uma criança da idade dele se engatasse em algo com a capa ou "entrasse demais na fantasia", fechei o velcro preto com cuidado, frouxo o suficiente para que não ficasse desconfortável. A máscara ele mesmo pôs, enquanto subia no sofá (aquele sofá que a tia mandou tirar os pés pra ficar mais rente ao chão, sabe-se lá por quê).
O pequeno ensaiou o pulo umas três ou quatro vezes. Quando finalmente tomou coragem, dobrou bem os joelhos e se precipitou em direção ao chão. Já no chão, olhou pra mim por uns segundos, olhos azuis estralados, e parecia assustado: "Não voa!?". Andou devagar pela sala, matutando. Pulou mais um pouco na espuma do sofá e, como quem descobre um defeito de fábrica, sentenciou: "Não tá voando". Cismava com as sobrancelhas franzidas enquanto arrastava a máscara para a testa. Estranhando que o pulo não tivesse sido mais que um pulo, saiu em direção à garagem, onde estavam os homens, olhando para os rostos, com atenção e cenho habituais. Alguém haveria de resolver a questão! Enxerguei o suficiente para perceber que balançava a capa e repetia: "Não voa!? Não voa!? NÃO VOA!?". Mas ninguém lhe deu muita atenção, então ele arrancou a fantasia completa e voltou pro quarto de brinquedos.
Não voa, Érick. É assim com muitas coisas na vida, não importa o quanto tentemos nos convencer do contrário ou o quanto fiquemos atônitos com a constatação. O Batman não voa. Pode ser um cara muito legal ou com uma boa farsa (identidade secreta e todo o mais), mas provavelmente não pegará voo nunca. Talvez tenha sido criado para não voar, talvez tenha medo de altura, talvez se sinta impotente, sem asas. Talvez esse não seja seu superpoder. Sendo você, o papai ou o Ben Affleck, o Batman não voa. Não tivemos coragem de te dizer no início, tinha tudo para voar, mas não voa. Deixe ele pra lá, se te chateia tanto. É a frieza, recomendável, de entrar demais na realidade - e não na fantasia, como temem as sábias senhoras da sala.

Aproveitemos os pés fincados no chão, e aprendamos, ainda que decepcionados, a brincar de outra coisa menos incrível e mais real.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A lei que pesava

Éramos amigos e agora somos estranhos um ao outro. Mas não importa que assim o seja: não procuremos escondê-lo ou calá-lo como se isso nos desse razão para nos envergonhar. Somos dois navios cada um dos quais com o seu objetivo e a sua rota particular; podemos cruzar-nos, talvez, e celebrar juntos uma festa, como já o fizemos - e esses corajosos barcos estavam lá tão tranquilos, debaixo do mesmo sol, no mesmo porto que se teria acreditado que tinham alcançado o objetivo, o mesmo destino. Mas a onipotência das nossas tarefas separou-nos em seguida, empurrados para mares diferentes, debaixo de outros sóis - e talvez nunca mais nos voltemos a ver: mares diferentes, sóis diversos nos mudaram! Era preciso que nos tornássemos estranhos um ao outro: era a lei que pesava entre nós... Há provavelmente uma formidável trajetória, uma pista invisível, uma órbita estelar, sobre a qual os nossos caminhos e os nossos objetivos diferentes estão inscritos como pequenas etapas; elevemo-nos até este pensamento. Porém, a nossa vida é demasiado curta e a nossa vista demasiado fraca para que possamos ser mais que amigos, no sentido em que o permite esta sublime possibilidade... Acreditemos, então, na nossa amizade estelar, mesmo se tivermos de ser inimigos na terra.

[A gaia ciência. Aforismo 279. Nietzsche]

domingo, 31 de maio de 2015

Estive há |0|4| dias sem chorar por amor

Choveu até quarta-feira, depois fez frio. Engolia seco, pela primeira vez, o fim de um relacionamento. Ouvi Ana Carolina, Leoni, Legião, Engenheiros, Los Hermanos, ouvi sertanejo. Contei a história a uma dezena de pessoas que me perguntaram sobre ela. Nenhuma lágrima. Ouvi "Devolva-me", da Adriana Calcanhotto, e nada.
Passei os quatro primeiros dias letárgica e isso me surpreendeu. Houve quem dissesse que eu tinha motivos, que toda dor é passível de sofrimento, que não posso comparar as situações, mas... Guinho perdeu Clarice há oito dias, aos vinte e nove anos, para uma tragédia. No início de uma vida a dois, com muita vontade de insistir para que desse certo, quem sabe para sempre. "A dor dele é descomunalmente maior", eu me dizia. "A dor do Guinho, calada, estanca qualquer outra que queira gritar ao redor". Cada um tem sua forma de reagir a uma perda, mas qualquer que seja ela, a reação do Guinho foi, por quatro dias, morfina para a minha.
A minha, que sempre foi derreter por qualquer contratempo. Talvez eu não tenha me permitido sofrer, com lágrimas, antes de esgotar todas as possibilidades de agir com praticidade. Não antes de providenciar a retirada das fotos da exposição e descartar a 3x4 da carteira, de dar cabo dos bilhetes, de entocar qualquer lembrança no fundo das gavetas, repetindo, incansável, o que me fez chegar até aqui: o fim, no fim.
Se contei o meu tempo seco e distante com tamanho mau gosto, é só porque a soma dos dias sem choro talvez significasse que, diante das circunstâncias, eu houvesse aprendido a voltar a rolar a pedra-coração ao topo da montanha, resiliente, por mais pesada que me parecesse, sem lastimar por mais que um dia os arranhões causados por sua última queda. Alguém tão próximo que ficou severa e eternamente ferido... Então foi em favor dele - e só em favor dele - que, por quatro dias, eu reconheci o direito de chorar por amor.
Na sexta-feira faltou a luz. Agradecida, chorei baixinho até dormir pensando que, se ninguém visse, eu poderia me permitir. Voltando à vida, lavando a alma para um recomeço. O fato é que, logo depois do fim, eu estive quatro dias sem chorar por amor. Como se diz nos discursos de alcoólicos anônimos e dependentes químicos, como se diz da chuva no nordeste, como nos letreiros que se encontra perto das polícias, nas rodovias.
Na sexta-feira, humana e sensível, com lembranças, água e sal, zerei o placar. Repito Fabíola Simões: "é esse sal que tempera a experiência linda e única que começa agora"...

sexta-feira, 27 de março de 2015

Coliseu

O gladiador, assustado, espia a plateia com ar de altivez enquanto ajeita o escudo e leva em punho a espada. Ofega. Seu interesse é, exclusivamente, sobreviver para fazer história. De antemão, tem certeza que será difícil. Ele não sabe o que lhe aguarda, mas tem a ideia fixa de que o que quer que esteja por vir, a criatura é mais forte que ele. É apenas para esta hipótese que está constantemente preparado. De suas experiências, infere que é para isso que servem os espetáculos: divertir a plateia, que assiste a um combate estarrecedoramente desmedido de forças. O gladiador tem, portanto, a desvantagem de se sentir permanentemente ameaçado pelos atributos que não tem e pelo adversário que não conhece. Ele aguarda o pior, porque sabe ou crê que não lhe fora reservada parcela suficiente de sorte para que o obstáculo seja transponível num golpe só. Sua vantagem é a magnitude do feito. Se o sucesso vier - qualquer que seja a batalha - será sofrido e suado e merecido. Se vier diante de um oponente tão qualificado, este será o dourado do louro de sua vitória.
Não, não é possível! Um rugido!? O gladiador tem uma vertigem.
O leão irrompe na arena. O berro alto e longo com a boca de leão bem aberta convence o próprio leão de que ele tem vantagem sobre qualquer ser, bípede ou quadrúpede, que lhe espere depois da comporta. Talvez não seja verdade, já que ele só tem dentes e garras e força e vontade, em vez de aço forjado e dois gumes. Mas ele vai rugindo, andando lento enquanto toma fôlego, para assegurar que todos saibam o quanto ele tem confiança, quase como se pudesse saber que a sua natureza é a disputa e que é o respeito ao confronto e às suas capacidades que lhe faz vencer quase todas as vezes. Ele mostra os dentes. Não porque quer impingir ao gladiador o medo de uma mordida, mas porque não se ruge sem mostrar os dentes e porque sem rugido não se sente apto. Sem o rugido, o leão é só um bicho apreensivo como tantos outros. A maioria do público, logicamente, não o compreende, e então enxerga o gladiador mais humilde. E os manuais de bom público recomendam que o bom humano se identifique com o mais humilde. O leão não entende os aplausos quando é ferido fazendo o que tem que ser feito.
O gladiador, com as palmas ritmadas de incentivo dos que lhe assistem, no íntimo acha o leão um bicho prepotente, porque chega para o combate certo de que tem chances reais de sair com vida, sem nem cogitar a hipótese da perda, e por isso deve ser vencido. E se esquece que ele mesmo só cogita a perda.
O leão faz o que sabe fazer e avança, à frente do gladiador. Não para matá-lo, mas para ter um bom desempenho. Sente que é para isso que veio ao mundo, que foi escolhido para o espetáculo e que, segundos antes, tiraram-lhe da jaula. Não avança para destruir expectativas, mostrar grandeza na comparação ao gladiador, mas porque é sua natureza. E se esquece - ou nem se dá conta - de que vai frustrar a maioria da plateia se agir conforme seus instintos, porque a plateia inteira também teve vertigem quando ele rugiu - sabe-se lá por quê.

Se o gladiador vence, é ovacionado na aldeia por três semanas ou mais, porque superou todas as tantas dificuldades conhecidas e, com sua perseverança, fez dissipar a arrogância do leão. Ninguém se lembra que venceu em nome de sua vaidade. No fim das contas, o gladiador é sempre o herói, aconteça o que acontecer, porque quase ninguém torce para quem lhe parece Golias.

Se o leão vence, não faz mais que a obrigação. No futuro haverá outros gladiadores a quem enfrentar. Terá de rugir e avançar outras tantas vezes. Sua coragem não é aplaudida. Ninguém pergunta ao leão se ele tem medo e ninguém acreditaria se ele dissesse que sim. É o nosso ditado às avessas: o leão mata um gladiador por dia. Mas talvez isso não seja tão fácil quanto parece.