segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Eco [2]

Este é o segundo texto de uma espécie de série.
O primeiro, se quiser, você pode ler clicando aqui.

Laura, começo escrevendo como se fosse uma carta. Teu nome primeiro, como me vinha quase todas as manhãs: Laura. Curto, sonoro. Em duas sílabas, que de hiato já basta o que há entre nós. E então uma vírgula, um suspiro de alívio, um "apesar de" para que todo o resto que move o meu mundo se ponha a girar.
Hoje acordei mais cedo que o habitual, querendo antecipar o fim desta história de amor às memórias por escrito. É a nossa, tu sabes. É o nosso, tu sabes. São as nossas, tu sabes. Ou pelo menos tem a ver conosco. É uma versão romantizada de nós, para que não encalhe na prateleira das livrarias, como veio a encalhar nosso amor.
Amor. Digo esta palavra e coro de vergonha. Também tem me ocorrido com o verbo "sentir". Um homem feito como eu, com tantas preocupações cotidianas com as quais me ocupar, escrevendo sobre uma história que acabou. Parece piada. Pior: parece fraqueza. Que ideia de amor terá quem me ler? Oras, finjo mesmo que estou conversando contigo, tantas vezes, que não me custa registrar a pergunta: foi amor, Laura? Sexo, amizade colorida, encontro de almas? Seja o que for, noto agora que nunca teve vocação para durar, na prática. O quanto durou foi pela nossa insistência na metafísica. No lirismo super bonder que nos grudou como gruda os dedos. Achamos sempre que nunca mais vai soltar e dois dias depois já não há vestígio.
Quando interrompi o primeiro gole de café para atender à porta, a disposição de por fim a estes escritos cedeu. Chegaram os últimos móveis, junto com eles o armário. Aquele que tu organizavas enquanto eu cozinhava as tuas dezenas de pratos preferidos, como que para agradecer e ajudar a organizar um pouco a minha vida. Coisa besta, mas foi um soco no estômago.
Eu vou fazer um relicário, Laura. Como na música do Nando. Não vou jogar fora estas coisas sobre nós. Mesmo que não tenha sido amor. Mesmo que não tenha durado o quanto achávamos que ia, apaixonados que estávamos. Mesmo que os ecos voltem mais alto do que o que dissemos e vivemos, dadas as minhas hipérboles. Cada memória merece ser novamente gritada nesta prosa. Vou compilá-las, catalogá-las aos poucos, dobrando cada aresta para que caibam na estante.
Quando terminaram de descarregar e montar tudo, fui assinar o recibo de entrega e, por pouco, não me despedi com um "Todo teu,". Cheguei a escrever o T maiúsculo, uma grafia cuidadosa. E depois risquei, claro. O funcionário da empresa de mudança ia rir para diabo da minha cara.
Sem muito esforço, recordei de um bilhete que te escrevi. Deve estar no fundo da gaveta reservada para as críticas. Eu não fiz muitas, mas sou prolixo até nas notas de rodapé. No bilhete, que eu escrevia para agradecer aquela sexta-feira incrível, fazendo graça com a tua inaptidão para a cozinha e a maestria em lavar a louça, eu dizia que a tua tia Ester devia arranjar um novo marido e parar de implicar conosco. Arrematei com qualquer coisa que sugeria que ela era mal amada.
Faltou-me o tato, não era bem o que deveria ter dito. Primeiro que, com um nome tão bonito, que eu inclusive poria numa filha, má pessoa tua tia não podia ser. Efetivamente não era, tirando o fundamentalismo religioso. Segundo que homem não ajeita a vida de mulher nenhuma, só bagunça.
Se vocês ainda tiverem contato, diga a ela que quando o meu olho cruzou com o teu aquela fração de segundo era um felizes para sempre. Como nos contos de fada. E que também por isso não precisávamos casar para transar. Que a gente não sabia se era uma promessa divina se realizando, força do acaso ou de sorte. Então apenas aceitava. Diga, mais do que o óbvio - que já ultrapassamos o primeiro milênio do mundo cristão e algumas coisas ficaram por lá -, que mão dada era pouco para o quanto eu queria ser teu. Inteiro.
Conte a ela que o amor nunca é pecado e que, se ocorre de ser, já nasce perdoado.

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