quinta-feira, 6 de julho de 2017

A capivara

No fim, bastaria apenas reproduzir o adágio: o que não tem remédio, remediado está. Como em todas as estórias que já nos contaram, a moral da história, dita de antemão, nua e crua, economiza o falatório. Mas hoje eu quero contar a fábula inteira em detalhes.
Há quatro semanas, mais ou menos, indo para o trabalho eu avistei uma capivara morta na beira da rodovia. Quando passei de carro por aquele trecho, oito e tanto da manhã, o sangue vermelho vivo tingindo o asfalto no dia claro fazia crer que o atropelamento tinha acontecido poucas horas antes.
É uma coisa relativamente simples de acontecer, para quem mora no interior, mas à primeira vista a cena era chocante. Pegava a gente desprevenido. Primeiro porque eu já atropelei uma capivara antes e sei o estrago e o susto que elas causam. Digo, atropelei não propriamente, mas já estive no banco da frente de um carro que atropelou uma capivara, e o baque do corpo gordo contra o para-choque mesmo estando de carona é uma experiência horrível que não desejo a ninguém. Segundo porque era um bicho morto. Por mais irracionais que me pareçam as capivaras, era um animalzinho que há pouco estava feliz da vida com suas quatro patas fincadas na barranca do rio comendo grama ou fruta - eu nem sei o que as capivaras comem - e agora jazia ali, para todo o sempre. O ocorrido despertava uma sensação de compaixão até para a menor das ativistas dos direitos dos animais, como eu.
Naquele primeiro dia, há umas quatro semanas, a viagem até chegar no escritório pareceu muito mais longa que o habitual. Esbravejei indignada pensando que era uma irresponsabilidade alguém tê-la atropelado e deixado ali. Dado causa ao fatídico acidente sem prestar os primeiros socorros e, agora, seguido a vida normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Mas minha indignação era, notei depois, um absurdo. Ninguém atropela uma capivara por querer transitando na BR. Mesmo prestados socorros, talvez não tenha dado tempo de chamar um veterinário. Ou já não havia mais o que fazer. Ninguém deseja o prejuízo material e o espanto de um evento desta magnitude. Também não há, reparo agora, um jeito digno de velar um animal selvagem. Não é um humano, não há família a quem indenizar ou pedir perdão. Não há mesmo maneira correta de enterrar uma capivara morta por acidente na beira da rodovia. O que eu queria, afinal!? Que o condutor a enterrasse ali mesmo, em terras de estranhos? Que botasse no porta-malas e enterrasse no quintal de casa? Levasse para o trabalho e tomasse providência no final do dia? E o bicho fedendo de morte e impregnando tudo ao redor. Não, não, não há maneira de seguir, objetivamente, carregando aquele peso estrada afora. Então, poucos dias mais tarde, eu me dei conta de que se fosse eu mesma a atropelá-la, não seria capaz de demovê-la um centímetro sequer imediatamente, ainda que quisesse. Pior do que isso, eu nem sabia o quanto aquilo tinha afetado intimamente o causador do atropelamento. Desse modo, mesmo culpado, o motorista haveria de ser perdoado por seguir adiante e deixá-la ali.
Conforme os dias foram passando, eu fui alternando entre o sentimento de culpa (veja você: eu já sabia que não tinha forças para arrastá-la nem se quisesse, que não era comigo, mas ainda assim me sentia culpada por não poder fazer nada, o que consumia uma energia enorme) e o sentimento de piedade, fazendo um esforço mental para deixar para lá (que às vezes me custava forças que eu pensava que não tinha para controlar meus próprios pensamentos).
No quarto dia, tivemos uma chuva torrencial na região. E no meio de um afazer cotidiano, ouvindo os trovões, pensei: pobre capivara estatelada, vivendo este temporal e o sol de rachar no frio deste inverno, ao relento, sem cerimônias.
Nessa parte da história, imagino, você pensará: é bobagem, é só uma capivara, isso acontece toda hora. Embora de maneira geral eu concorde, esta é uma daquelas circunstâncias em que não se explica o quanto o inevitável é capaz de tocar fundo na alma da gente. A capivara atropelada se tornou a insígnia dos meus problemas. Em muito se assemelhava e assemelha com a minha necessidade de digerir e sofrer o irremediável da minha vida.
Vida que segue.
Ontem, tarde da noite, voltei para casa e já era escuro. Não pude vê-la, nem de longe e nem rapidamente, mas sabia que estava ali. A gente sabe ou pressente o óbvio. Ultimamente, quando passo ao seu lado, dou apenas uma espiadinha sem demora, para conferir a carcaça magra e pálida.
Agora, fazendo um exercício de memória, lembrei do dia em que, no exato momento em que passei por aquele trecho da estrada, já meio distraída, havia um urubu devorando suas tripas. Para minha querida amiga, então, já não havia remédio. Foi como se eu me desse conta, inteiramente e outra vez, de que estava tudo acabado, dada a sequência na cadeia alimentar. O curso do tempo estava operando seu milagroso trabalho. O que é ótimo. Mas se me lembro, ainda me dói como da primeira vez.

Às vezes me dá muito trabalho aceitar o que é fatal.
O que não tem remédio, remediado está.
Ou: viver bem demanda aprender a lidar com as capivaras, sonhos e planos que morrem pelo caminho.

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