quinta-feira, 20 de julho de 2017

Lamento sertanejo

Construí sobre a areia movediça uma tapera, e dela fiz uma mansão. Levantei parede, varri bem o chão. O pó eu tirava todo dia. Como eu amei a minha casinha de improviso! A minha casinha querida que me acolhia como se fosse um palácio de um rei importante. Eu ia chegando e a porta abria, a tramela velha girava inteira pra minha vontade de morar no que fosse meu, no que ninguém mais pudesse destrancar que não eu. O sol entrava manso na fresta da janela fim de tarde. Eu botava a cadeira de palha na varanda e olhava longe, tudo tranquilo, e numa hora dessa tudo ficava tão lindo que a vista não alcançava fim praquele susto de felicidade que a minha casinha me dava. Nos cafundós de uma terra onde não se podia plantar quase nada, num sertão onde só chovia depois de muita reza, eu rezava. E daí dava goteira, que quando chove casa de pobre é assim mesmo. Tratava de me conformar. O chão batido inundava todo, lá ia eu com o rodo. A chuva lavou, tá novo. E punha as roupas pra secar. E punha a alma, calejada, pra quarar. É aqui, e ninguém mais, que eu escolhi morar, é aqui que a chuva vai chover e eu vou regar. Feito árvore sem semeadura, criei raiz e fui ficando. Flori um verão. Depois mais outro. No frio comprei coberta, que em casa minha, calor é que não ia faltar.
Foi ali naquela moradinha pequena que planejei um filho só, que não cheguei a ter, que nunca dei à luz talvez por falta de sorte, talvez por sobra, que nessa época a parteira ainda nem tava por chegar. Eu decorei tudo como manda o figurino, pra bem de esperar o tempo certo se aprumar. Comprei estante de madeira, e até queria ter um sofá. Quando a noite chegava, a lâmpada comprida e branca demorava um pouco, ligava e acendia fazendo barulho pra danar, mas não fazia mal, alumiando é o que conta. Panela também tinha. Comprei vermelha, como era moda. E barata. Barata tinha de monte. Que me importava? A casa da gente é a casa da gente. Dá gosto de ver a luz na casa da gente, a água saindo da torneira, o cheiro de comida impregnando a cama do conjugado. Era uma alegria humilde, mas eu gostava muito de levar a vida na minha tapera porque a minha tapera era minha. Ou eu achava que era. Aquela ideia de ter teto tava pronta e acabada.
Até que um dia a natureza buscou de volta a casa toda de uma vez. Não sobrou madeira nem sapê nem nada pra contar história. Até o pano de louça de inicial bordada, presente da madrinha, junto com o resto do enxoval, foi pro brejo. A terra me engoliu o cofrinho de moeda, a cama mole, o ventilador mequetrefe, o travesseiro velho, o espelhão redondo do banheiro, meu único luxo. Até o globo terrestre que ficava em cima do bidê - onde eu não achava, no mundo inteiro, lugar melhor que a minha casinha, a terra engoliu. Sem deixar rastro. Sem chance de reclamo ou apelo. O chão puxou pela última ponta a raiz daquela planta que reguei dia e noite pra ver se vingava, tão ligeiro que parecia feitiço. A luz foi se apagando por baixo da terra como se nunca tivesse tido luz. Direto pro inferno, de certo. Nunca mais minha casinha. Fui tão feliz que quase que me esqueço da areia movediça sobre a qual eu levantei a fortaleza. Não fosse essa peça que o destino me pregou, tinha esquecido mesmo. Mas agora já não podia. A mão na cabeça, tremendo que nem vara verde de um apavoro feito o que bate com notícia de morte de parente, eu reparei que fingi tempo demais que não via que a minha casinha já foi levantada caindo aos pedaços. Eu fui feliz e não me avisaram de novo que areia movediça engole casa. O desaviso me custou uma nota de coisa que, cê deve de saber, não há dinheiro que pague. Perdi a minha ignorância, de sopetão, feito um tiro que tira a vida de quem não honra a conta da venda na mão do Setembrino. Defendo a honra, mas nem preciso, chorando na frente da ruína da minha tapera. Com esse lamento sertanejo que vai a São Paulo e volta. E não dá mais conta de esquecer que sem chão firme não há casa que fique de pé.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito peculiar o seu texto . Dá uma ambientação legal na cabeça do cenário que descreve. (MCR)