terça-feira, 25 de julho de 2017

Você me desperdiça

Queimei o céu da boca com a parte rala da sopa da Elaini. Terminei a refeição e escovei os dentes cuidadosamente, mais por fora do que por dentro, para que as cerdas duras não me arrancassem desavisadamente a pele frágil e áspera - este fenômeno paradoxo que só as queimaduras conseguem produzir.
No enxágue, quase um gozo de alívio: a água gelada sorvida da mão esquerda para a boca, consolando a queimadura como quem a cura. A água na temperatura certa, quem diria, um analgésico poderoso, interrompendo as vias de transmissão nervosa entre o meu ferimento e o meu cérebro, tão viciado em sentir fogo (e, agora, também água) tão poderosamente.
Encarei o espelho do banheiro e sorri, enquanto abaixava a cabeça e cuspia. Era assim, então, que eu devia encarar o ocorrido. Com uma espécie de gratidão pelo instante de coragem louca para iniciar a escovação dos dentes, um ato que me pareceu absolutamente necessário e quase instintivo, apesar do perigo. Com uma certeza de que manter a água gelada na boca por mais tempo do que é costume faria dela fria e depois morna e depois quente como um fogo brando que me queimaria um pouco mais, ou pelo menos não faria diferença positivamente.
Confesso: eu me preparei para recebê-la. Ao contrário do que pretendo fazer crer - de que o bom mesmo é só o susto, e de que pensando com calma a vontade e a potência daquele alívio se esvaem - no fundo eu sei que não se engole a espuma da escovação de dentes a seco sem um certo desconforto. Então a água, em alguma medida, é necessária. A água é literalmente elementar para quem estou sendo depois de experimentá-la numa circunstância tão incomum.
E, no íntimo, eu desejei tê-la ali antes de saber que me estancaria a dor. Se afirmo que não se pode prolongar algo para além do que deve durar por uma questão de funcionalidade, na prática eu quis tê-la mais comigo. Bochechar. Gargarejar. Deixar escorrer pelo pescoço. Fazer com que o prazer durasse, exponenciado. Eu quis e eu quero, se me detiver no assunto, beber litros e litros de água ainda nesta semana. Até passar a língua no céu da boca recém aguado e sentir que tudo está como antes ou mais hidratado. Eu quis e eu quero que não fosse ou seja mais possível retroceder ou desperdiçar água nenhuma neste mundo.

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