terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Dama e vagabundo

Hoje tomei banho no escuro. Aprendi com um amigo, e guardei o truque para momentos críticos. Eu precisava tirar o cheiro de salgadinho barato de baixo das unhas. Quando terminei, desistindo de conseguir, virei para desligar o registro e vi um ponto claro do tamanho de uma moeda na parede. Shampoo, só pode. É muito difícil acertar os frascos no escuro. Joguei água com a mão. Não saía. Joguei mais água com a mão. Deve ser shampoo do banho passado. Depois, quando aproximei a mão pela terceira vez, sumiu. Vi que era um raio de luz. Era a luz do poste refletindo através da janela, mais claro em um único lugar. Sorri. Quando a gente percebe a luz, não tem mais como achar que é shampoo. Mas e quando a gente não percebe? Quantas centenas de vezes jogaremos água em cima da luz achando que é shampoo que vai escorrer parede abaixo até o ralo, até que a descoberta pareça óbvia demais? Quantas vezes a vida vai nos permitir repetir um padrão exaustivamente? Quando vou me dar conta do que este arranjo tão inesperado tem para me ensinar? Qual a menor distância entre o que a gente já foi e sofreu sendo e o que a gente quer ser, depois, para não incorrer no mesmo erro? Para superar. Para dar o próximo passo. Qual é o ponto que liga a dama ao vagabundo, meu senhor? E o que é uma dama? E o que representa para a dama um vagabundo. E o que representa para a dama o vagabundo deixar muito claro que gosta e não quer deixar de ser vagabundo. Esta reflexão é sobre poder ou sobre liberdade? Preciso aprender a parar ou a parar de resistir? Quanto tempo vai levar pras gêmeas da minha personalidade fazerem as pazes, depois que se partiram? As duas puxam o cabo de guerra do excesso na direção contrária só pra ver quem vence. Perco eu. Porque ou me entrego para a arte - e fico louca - ou vivo lentificada pelo que rende, rangendo os dentes. Esse barulho de concha zunindo no ouvido esquerdo, que não sara em silêncio. O preço do equilíbrio é o equilibrismo. Eu sou um bardo morrendo, desidratado, numa terra em que ninguém mais canta. Tristeza que não deságua. Que não deságua mais. Poeira. Uma de mim é iludida pelo mar, a outra desiludida com a busca pelo horizonte. Não há nada que não soe mal entre ser iludida ou desiludida. Ilusionismo é entretenimento. Sempre acaba mal, a menos que ninguém perceba. Quanto tempo vai levar pra essa ressaca depois de cada momento feliz passar? Uma de mim disseca cada não e a outra tenta deixar passar com muita violência. Não se respeita. Não respeita a própria dor. Finge. Uiva pra um canto qualquer que não seja a lua. Uma pertence à outra. Uma não existiria sem a outra. Uma comprou um carro e a outra vendeu a alma. A pior não encara ninguém nos olhos e a melhorzinha prefere sempre o que imagina. Uma quer alguém que se curve às suas regras e a outra alguém que viva o que ela não tem coragem. Esse é sobre mim e vocês. Nenhuma das duas existiria tão inteiramente se a gente não tivesse me quebrado ao meio.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Cena de uma tomada só

Estou correndo no escuro, ofegante, cena de uma tomada só, olhando pra trás de pouco em pouco. Tenho mais medo de olhar pra trás do que de seguir em frente a esmo nesta velocidade. Com certeza algo lá atrás me persegue. Eu sou a mocinha burra de um suspense ruim, que escolhe sempre o caminho do beco. Ela luta contra o perigo do jeito mais patético possível: primeiro, fugindo. Pinga uma gota de suor na têmpora, a bochecha cora e falta o ar. Tosse. Tropeça. Levanta e corre, agora mais lenta. Ela grita com uma voz fina irritante e horrorizada, num idioma inaudível, como se fosse adiantar. E precisa desacelerar pra não cair de exaustão, eu sei, mas agora acostumou a correr pra não ser alcançada. Nem que seja para o beco. Correndo, quase não pensa. Sente câimbras e um cansaço, mas não pensa. E ela corre, teimosa, todo dia e tarde da noite. E corre na rua e na esteira, pra ganhar condicionamento físico. Corre de mil maneiras que não consegue explicar. Corre em círculos. De moto. Dentro do globo da morte de um circo mequetrefe. Acelerando e fazendo barulho com a descarga aberta. O motor ronca altíssimo. Wrong. Wrooooong. Acelera de novo. Parece esporte. Mas chega sempre a hora em que alguém ou algo a alcança. E ela confronta de perto a patifaria de se defender com algum instrumento imbecil como um cotonete, uma pantufa ou, para melhorar a metáfora, um pedaço de gelo. O suspense é a triste espera por mais. Viver um suspense constante é desejar um susto pior do que o do silêncio tranquilo da própria companhia. E adiar o confronto imediato, ainda em pleno vigor físico e mental, com o vazio por baixo do capuz.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Eco [15]

Eu tenho um amigo que virou crente. Depois de beber vodka comigo até de manhã algumas vezes e dar uns amassos dentro do carro da mãe dele no pátio do ginásio de esportes, Laura. Dá pra acreditar? Bom, eu não virei. E por muito tempo eu não entendi como aquilo tinha acontecido com ele, mas isso não vem ao caso. Já não importa. Eu só quero falar que isso consome tempo e neurônios da minha vida que eu acho que não são consumidos da vida dele. Em todos os setores. Quando a matéria é relacionamento, então, nem se fala. Porque eu cresci dizendo que não queria casar e ter filhos. Eu disse isso pra ele, aos 19, e ele riu. Cresci ouvindo as pessoas me mandando bater na boca, que Deus podia castigar. Ouvindo as pessoas dizerem que com o tempo passava. Porque, é claro, aos 19 dizer isso é uma excentricidade, depois é que complica. O mito do amor romântico foi-se embora pra mim faz um tempão. Eu nem sei dizer quando. Talvez aos 11. E desde que eu amadureci e descobri que podia, efetivamente, não casar e não ter filhos, a contragosto das batidas na boca que eu não dei, isto ganhou o peso de uma escolha. Uma escolha toda minha. Uma escolha que ainda passa pelas lentes com as quais as outras pessoas me enxergam. Uma escolha que atravessa os ponteiros do relógio biológico feminino, Laura. Uma escolha que se revela também uma espécie de poder. Só que este poder veio, como era natural que viesse, carregado de uma série de consequências. Não querer ou mesmo não ter como preceito primordial o que as pessoas esperam que você queira pode ser desesperador. Dá uma sensação de desajuste que eu nunca tive. E as pessoas esperavam que eu quisesse namorar, casar e ter filhos. Eu tenho várias amigos que querem casar e ter filhos desde sempre. Eu tenho amigos que já casaram. Eu nem ao menos posso dizer com segurança que nunca vou casar e que nunca vou ter filhos, mas ser uma pessoa que tem coragem de dizer que isto não é um sonho em voz alta ainda me faz um bicho estranho. Talvez sempre fará. Para ser franco, ser um bicho estranho repele muita gente legal. E também atrai outros bichos estranhos, que nem sempre sabem o que querem da vida. É isto. É este o ponto. Ser alguém com muitas possibilidades atrai outras pessoas com muitas possibilidades, quase nunca compatíveis, porque parece prova de múltipla escolha sem resposta certa. A gente fica somando e subtraindo sem saber onde vai dar. Dado o desafio de se encontrar, que pode levar uma vida inteira, é como se a pessoa estando liberta do que lhe impuseram fosse liberta para andar atrás do próprio rabo. Estamos todos nós, os que provavelmente não querem casar, ocupados demais descobrindo o que há em cada porta da esperança do Silvio Santos para além daquele formato cristão de ser feliz. E é por isso que eu acho que a vida do meu amigo que virou crente é um pouco mais tranquila do que a minha agora: toda mulher crente que ele conheceu crente quer casar. Pelo menos o formato de relacionamento que eles procuram é uma unanimidade. Sobra tempo pra surpreender em coisas como o corte de cabelo e a profissão, por exemplo. Eu, não. Eu tenho um deserto inteiro para atravessar, Laura. Eu preciso descobrir o que eu quero e, só depois, achar quem queira igual. É muito trabalho! Depois que você tira a prioridade do casamento do pódio hors concours, a pista se abre em tantas raias! Minha nossa! Dá um medo. Às vezes o desespero é tanto que dá vontade de entrar em qualquer porta e ficar ali paradinho. Mas é uma delícia. Mas às vezes tudo o que você quer é colocar a prioridade dos outros pra você lá no topo de volta, na caixa, quietinha. Ajeitar com o pé. Com os dois pés, fazendo força contra a parede. Chamar alguém pra ajudar. Não cabe mais. Para confabular a frase de efeito perfeita, depois que um horizonte se abre, ele não fica mais estreito na vertical. O meu maior desafio enquanto pessoa que descobriu que pode mesmo não casar por não querer, mas acha meio triste viver sozinho pra sempre, é encontrar alguém que saiba que pode não ser feliz pra sempre e já tenha encontrado a medida certa entre o desespero e a porralouquice, pra me ensinar. Mas como eu também não creio que alguém mereça este fardo que seria o tal do ensinamento, fica assim. Eu meio zonzo e inquieto, num desconforto ímpar. Eles meio vagantes. Estando ali, de olho em tudo ao redor. Nasci cansado. Eu fico esperando que alguém finalmente me anteceda. Eu só quero alguém se for para descobrir comigo genuinamente o que eu quero, Laura, sem ninguém dizer que era só isso que eu devia querer.

Talvez mais valha virar crente.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

É tudo breu

Que ser iluminado eu tenho a impressão de ser, para supor que possa tirá-lo do mundo das trevas? Para supor que há um parafuso exato para dar duas apertadas e estará tudo resolvido, faltando apenas, como era no princípio agora e sempre, descobrir qual. Eles sempre vêm com defeito de fábrica, sabes. Ô, meu pai! Ninguém conserta a apatia! Volta pra Terra, lunática! Faço um tratado de 20 páginas sobre a queda brusca do império do ateu que deu like na publicação da gostosa sobre Deus. Ah, não, agora não dá mais. Deu pra mim. Releio sôfrega. Não me convenço. Vai que é a mãe doente fazendo miséria com as ideias do peão. Opa, ele curtiu mais três publicações seguidas: uma ilustração da campanha de prevenção ao suicídio, um frame de filme cult com frase filosófica e uma foto do Freixo. Eu não aguento mais migalha. Eu não aguento mais inventar o que ele quer dizer e não diz por algum motivo misterioso. Meu estômago ronca. Mastigo os farelinhos com um prazer sadomasoquista. É de dar dó. Eu não aguento mais tentar entender a minha compulsão por esta merda de homem inacessível que ele é. Por esta miudeza de macho, que não se apresenta. Eu não aguento mais a pouca mulher que eu acho que sou enquanto quase sucumbo à vontade de chamar. Comigo não, paixão. Tenho vontade de fazer um interrogatório militar, tortura e tudo, mas só encolho os braços. P o x a. E aqui vamos nós outra vez. Com todas as doideiras que foram projetadas na minha cabeça enquanto esperava um sinal que não vinha para supervalorizá-lo quando veio. O silêncio é uma couraça dura demais para transpor. Dou de ombros. Dou uma volta no quarteirão. E tomo um ar e um café. Vinte e dois cafés. Não passa completamente. Tenho taquicardia. Atravesso a rua. Ando de um lado pro outro, zureta, querendo berrar coisas desconexas com as mãos balançando pra cima da cabeça. Me nota, porra! Dessa vez é um diálogo meu com a futura camisa de força. Eu googlo o nome dele três vezes por semana. Não tem Facebook, este animal. Não tem Lattes. Não tem processo trabalhista. Porque deve ser um procurado da Interpol. Ou incluso no programa de proteção à testemunha. Deve ser o novo nobel da paz, se achando superior às criaturas mudanas e pesquisando o dia inteiro. Bato o pé irritante de ansiedade. Vou me matar de gastrite. Me jogo no chão do supermercado pra mamãe comprar ele pra mim. Roo as unhas. Não que isso seja uma novidade. Imagino a rotina dele enquanto a cidade amanhece, que é quando me sobra tempo. Uma tragédia em três atos. Amanhã vai ser outro parto acordar nesse mundão cheio de doido. E finjo que adivinho o que ele precisa pra poder fazer de conta que sou eu. Tateio às cegas. É tudo breu.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Ai, ai, Ritinha!

Se um dia ele voltar eu lavo a cara na pia às pressas e seco bem com batidinhas leves, as bochechas rosinhas, revigorada. Transbordando as renúncias de que sou capaz pelos poros. Cabelo preso pra trás num rabo de cavalo baixo, de mulher decente. A unha clarinha bem aparada e um batom cor-da-boca, como ensinou a capa de uma Marie Claire dos anos 60. Se ele voltar eu passo a mão com força no avental amassado e vou me desculpando a bagunça enquanto ele entra porta adentro. Pelo resto da vida. Pergunto se ele quer uma água, um chá, um café quentinho, um bolinho de milho, que eu suporte aquele drama de família como desculpa para todos os comportamentos tóxicos até a aposentadoria, que eu não divirja daquele discursinho pré-formatado, que eu sei que ele gosta. Faz bem pro ego dele. Faço massagem no pé lembrando que de todas, eu. A rua fica na rua. Dentro de casa a rainha sempre fui eu. Pra quem ele sempre volta. Ele e eu e a nossa cadelinha de raça. Nosso conto encantado. Nossa paixão de menino, sempre viva nos nossos corações. E nessa aliança há 32 anos na minha mão, a marca de sol que nunca mais vai sair. Eu concordo com ele que casamento propriamente dito era coisa dos nossos avós, mas se ele voltar eu tiro do armário e ponho no sol o vestido branco com o nome das amigas bordado na barra e, em sonho, já vejo antúrios no buquê. Como antigamente. Vou largando o emprego, a família, os meus planos. Mas só pra adiantar as coisas. Porque a gente sonha juntinhos uma velhice encantada que só o amor é capaz e é bom nada e ninguém atrapalhar. Se ele voltar eu tolero os excessos. Ignoro aquela vez que a vizinha se intrometeu no nosso amor porque ele gritou um pouquinho. Ele só tava um pouco nervoso, mas é porque me ama demais. Ninguém devia meter a colher. O dia tinha sido cheio, quem nunca passou por isso? A louca sou eu. Nunca me traiu, nem chegou perto. Esse meu ciúme é uma coisa que eu tenho que resolver comigo mesma. Por isso, se um dia ele voltar, nunca mais eu bebo uma gota de álcool, que é pra ajudar no processo. Esse meu escândalo depois de duas taças de vinho é mesmo coisa pra repensar. E essas minhas amigas são mesmo meio passadinhas. Falam muita bobagem. Se ele voltar eu não me excedo mais. Não mudo o tom ao falar de algo que me empolga ou me irrita. Não perco a mão. Eu vou ser o porto seguro que mais ou menos secretamente ele sempre esperou numa mulher. Muito diferente das outras. A futura mãe dos filhos, porque eu fico um charme segurando criança no colo! Um charme! Um meio sorriso tímido, a voz ritmada, angelical e doce, tudo muito doce, que ninguém aqui quer parecer histérica.
Se ele voltar, ai deus do céu, pensando agora, eu acho que vou ter que virar do avesso. Ai, ai, Ritinha, eu sei, eles amam as loucas, mas se casam com as outras. Pensando bem, se ele voltar, melhor que fique por lá.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Eu Maria e João

Estou sentada nesta poltrona confortável de veludo vermelho tentando aprender que abrir só as pernas pode ser muito diferente de abrir os braços e as pernas. Dizendo assim parece vulgar. Não importa. Eu abro as duas coisas. Eu abro mais os braços do que as pernas. Com coragem, abro as pernas. E sempre que eu abro as pernas, eu acabo abrindo os braços. Mas não é como se você se importasse. E se você não vem, eu abro os olhos e as orelhas. Fico atenta, sentada na frente desta tela de cinema. Buscando sinal. Não passa um filme. Em preto e branco, quem sabe? Não entendo de filmes. Sei falar, quando muito, da fotografia. Eu gosto quando me toca. Eu odeio ter que explicar por que me toca. Que impressão te causa aquele do David Lynch, que eu nem lembro o nome? Você é capaz de apreciar um argentino do Darín? O quê!? Aquele da vaca!? Eu adoro aquele da vaca! E a pele que habito? E o mais arrastado de todos do Woody Allen? Ensaiei mil perguntas inteligentinhas. Guardei na bolsa. Tomei mais um gole de guaraná. Fez barulhinho. Acabou. Eu sei quando acaba pelo barulho que faz quando vai embora. Não há trilha sonora que dê jeito. Vasculhei um riso nos créditos. Não era filme bobo de herói, dessa vez. Era daqueles que a gente não entende nada, mas prefere não falar sobre e nem entender. Mas não é como se você se importasse. A luz tá acesa agora. As fileiras vão descendo. O cinema vai esvaziando. Você não veio. Você não vem. Esse lixo todo sendo deixado pra trás outra vez e eu estaqueada nesta ideia fixa. Eu Maria e João. As pessoas descendo as escadas comovidas. Os passarinhos comeram o caminho? O bruxo mau não quis os ossinhos, só as carnes? E riu a risada malévola. E impregnou tudo de dúvida. Lançou maldição? Volta um dia um príncipe para quebrá-la? Quererei um príncipe, quando ele chegar? Duvido muito. Abri só as pernas. O que é muito diferente de saber fingir que os braços também não estivessem inteiramente abertos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Esotérico

Eu só gosto de quem está cansado. De quem tem os problemas mais óbvios bem aparentes e sente preguiça de mascará-los. Eu gosto de olhar pra quem mistura a vida real com algo que dói em algum lugar sem saber ou querer explicar onde. É uma receita infalível. Eu gosto do benefício da dúvida entre o mistério, o desafio e o desinteresse. Em casos assim, meu coração salta pela boca e eu o engulo de novo sem mastigar. A longo prazo vou adestrar meus instintos. Agora eu gosto de quem me ensina pelas tabelas que é possível um dia se permitir de novo e até lá, muito bem, até lá o riscado é outro. Vai-se levando como dá. Vai-se vivendo.
Gosto de não ter te visto dormir. De não ter enxergado ternura demais no teu ceticismo, embora provavelmente ela exista. De não ter te permitido ser mais doce. De não ter olhado pra trás depois do último beijo de cabo de guarda-chuva. Gosto de ter esfriado o meu sangue. De não ter te assustado. Gosto de realmente não ter imaginado onde pararíamos. Um pouco mais do que de termos parado. Gosto de como me cai bem essa cara de quem não se importa. Gosto da hora que antecede o sol que torna tudo lúcido. Gosto mesmo é da véspera da ligação no dia seguinte. Do que fica suspenso, sem conclusões. Gosto destes intervalos em que o que foi incrível vai sendo varrido da minha memória para deixar de ser uma obsessão. Porque, sendo assim, parece um progresso. Deve ser por isso que eu gosto do cheiro do teu cigarro impregnado na proximidade da boca, com uma certeza de morte. Ou uma vontade de morder a vida. De leve. O músculo mais fraco da parte de dentro da coxa começando a latejar. Este reflexo no espelho. Gosto de não saber de onde veio uma massagem nas costas, no meio de tanta praticidade. Eu não vou mentir, eu gosto bastante de não saber nada do que esperar.
Olho no fundo do teu olho escuro para procurar sentido: não vejo. Eu gosto um pouco dessa aflição. De imaginar tudo que eu nunca vou saber se não perguntar, e provavelmente não saberei ainda que pergunte. Gosto da hipótese em aberto, feito um quebra-cabeça de trocentas mil peças. Pedaço por pedaço. Se cada-um-é-um-universo, quem cala é dois. Todos iguais. Eu gosto da precisão cartesiana de conseguir separar o artista da obra, mas gosto mais ainda de não me ter sido dado material suficiente para gostar demais do artista, desta vez. Eu gosto de não entender de onde brotou esse raciocínio científico diretamente de dentro de um corpinho qualquer de balada que me diz, bem direto, que vocação não existe. Que o que existe é disciplina. Eu acho que gosto da matéria pura. Da pedra bruta. Do que não é dito. Quase sem dano colateral, mistério sempre há de pintar por aí.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Para atravessar os 25

Estou decidida a reconciliar as partes de mim que se quebraram. Já passou da hora, mas ainda é tempo. Já cansei demais de ter saudade de uma época em que eu era mais nobre. Ou mais ingênua. Ou de achar que era mais nobre porque mais ingênua. Eu estou decidida a deixar pra trás o que era, se eu já não sou. A abraçar com força o que eu estou sendo nesse exato momento. Sem culpa. Sem um eterno sentimento de trânsito sem paisagem.
Eu quero estar em paz com a busca e eleger a travessia. Mas eu quero, sobretudo, poder contemplar os meus progressos e regressos sem desânimo. Perdoar os excessos. Seguir meu ritmo. Respeitar meu fluxo. Um por de sol por dia. Eu quero celebrar todo santo dia a minha coragem de arriscar, como se ela fosse um milagre. Porque ela é, agora eu entendo. Tenho orgulho da mulher que eu me tornei. Começo a aceitar com mais sabedoria os livramentos: das pessoas que partem sem que eu consiga compreender por quê às coisas mínimas que fogem dos planos. Vou voltar aqui para me lembrar de todas essas resoluções, quando fraquejar. E, até lá, eu vou usar a voz imperativa para seguir ou espantar os meus delírios. Fluir por baixo das ondas de medo, em uma frequência menor. Devagar. Suave. Sem me ferir por exigir demais de mim. Vou transbordar por cima dos moldes do que o que me aconteceu quis fazer comigo. Eu vou me amar tanto a ponto de me respeitar inteira. E me enxergar íntegra de novo, recomposta de todo, vai alegrar o meu coração como nenhuma outra coisa na vida foi capaz. Eu vou crer, romântica, num Deus que talvez não seja arquiteto, mas energeticamente escreva os destinos do jeito exato que eles devem ser para que se aprenda cada coisa no amor, sem muita dor. Sem nenhuma dor vou juntar os pedaços. Colá-los. Desfazer os curativos que faltam. Arrancá-los. Deixá-los respirar.
Dentro desse corpo há agora então quem tenha um ano a mais e enxergue um pouco melhor o caminho.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Para viver um pequeno amor

Antonio me esqueceu da gramática. Quando dei por mim ele já estava impregnado na memória e no idioma da cidade, enquanto eu ainda crescia os olhos sorridente com um encantamento inédito por cada ruazinha estreita e por cada sobrado florido. Foi assim que o contexto me deu o Antonio, com aquela camisa branca de sábado e não me olhando, definitivamente não me olhando num canto do bar, enquanto eu ria da minha capacidade de engendrar romances impossíveis.
As circunstâncias colidiram o meu caminho no de Antonio, presenteando-o com uma mulher que eu não lembrava que podia ser e, ao mesmo tempo, secretamente sentia falta de ser. Passeando deslumbrada de chapéu panamá pelas praças de um tempo antigo. Dançando salsa despreocupada a milhares de quilômetros de casa. Desafogada da rotina e da pressão de ser quem eu me acostumei.
O Antonio me descobriu uma mulher de vacaciones e cheia de vida. Nova e livre. Ele me desobrigou daquela necessidade ultrapassada de parecer moderna. Agora eu não estava à frente e não estava atrás: agora eu estava ali. Há muito calor e nenhum compromisso com a vanguarda no terceiro mundo acima da linha do Equador. E foi lá que Antonio me surpreendeu a retórica. Quando dei por mim olhava pra trás, coqueteando descaradamente para ter certeza de que ele me seguiria. E todo dia o Antonio ia desaprendendo os meus títulos acadêmicos e méritos, para aprender coisas mais importantes e interessantes sobre mim. Coisas que eu ignorava. Coisas que eu também não sabia. Deve ter sido assim que Antonio desapareceu a minha pretensa erudição: quando ele não se importou com os meus verbos mal conjugados e com as minhas frases pela metade mas, ao contrário, achou aquilo estranho e excêntrico. Una bonita casualidad. Enquanto repetia não ter nada a perder, o Antonio reinventou o significado de ganhar. Porque o Antonio me ganhou por uns dias. Tornou-se mais uma possibilidade onde eu pretendia que tudo fosse descrédito.
Eu levei a alma pra passear naquele destino sonhado e o Antonio ofereceu o braço e o peito tatuados para me fazer companhia. Agora, de volta à casa, eu me pergunto se o dialeto do Antonio comporta a palavra expectativa, porque isso me assustaria. Mas para viver um pequeno amor não é necessária a renúncia e o cansaço que exigem os grandes. Só é preciso estar distraído o suficiente.
Antonio me deu a impressão de que somente homens fugazes como ele serão capazes de me acompanhar, cambiante, nesta fase da vida, embora dizer isso em voz alta seja proporcionalmente emocionante e assustador. Se qualquer amor tiver de ser pequeno para que eu continue gigante, que seja. Mas que continue a arder de tempos em tempos, como o mistério da identificação com um estrangeiro, já que em alguma medida somos todos. Que a gente se reencontre pelos caminhos que seguir, sobretudo com a melhor versão do que deseja ser. E sempre com o assombro da primeira vez.
A inspiração é o melhor legado de un pasajero de vida a otro.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Eu caio e começo a rir

É verdade, eu juro. Te acontece também ou é só comigo? Porque quando eu caio eu realmente começo a rir. Quando era criança, chorava. Acho que chorava de vergonha. Não sabia o quanto cair é normal. Chorava às vezes até meio desesperadamente. Na época, eu achava que demonstrar que estava doendo faria as pessoas se compadecerem. Quase nunca acontecia. As pessoas mordiam o canto da boca, disfarçavam ou davam uma voltinha, mas eu sei que elas achavam cômico.
Ah! Teve a fase do beijinho. Eu ganhava um beijinho e sarou. Depois ficou meio sem sentido ir atrás de um beijo pra curar um tombo. Fiquei me sentindo meio besta, sabe? Então hoje em dia, se o dano não é muito grande, eu logo dou risada. Até porque não importa que haja gente olhando se eu disparar na gargalhada. Um momento eu comigo. Eu com meu tombo. É melhor zombar com a plateia, ou apesar dela, do que fechar a cara. Ou chorar, né, porque chorar dá umas rugas horríveis. Eu prefiro as do riso. É melhor ver alguma graça nas próprias quedas do que se martirizar por elas. Hoje, quando volto a pensar neles, todos os meus tropeços me divertem. Tem os tropeços "como pude!?". Tem os tombos "eu te avisei". Tem as quedas "de onde é que veio isso!?". E tem os arranhões que ficaram depois de cada um. Mas quando eu sou capaz de rir é porque já passou. Já passou. Eu sempre sou capaz de rir. Então é bom que comece logo após o tombo, não acha? Eu diria "depois do tombo inesperado", porém, a gente nunca tem como prever que vai cair, então seria pleonasmo. A gente pode, no máximo, intuir. E a minha intuição nunca foi forte que chega pra me impedir de cair.
Quando eu vou cair, eu me jogo. É um hábito de mais de uma década. Eu vou com violência contra o chão, ajudando a gravidade. Eu curto o meu momento. Depois eu rio. Assopro a ferida e vou mostrando os dentes, na certeza de que não foi o primeiro e nem será o último. Esse corpinho aguenta.
Antes até do que levantar, é o riso depois da queda a grande glória de quem cai. Demore ou não, ela sempre chega.

domingo, 25 de março de 2018

Joguei moeda no mar

Na falta de uma fonte, joguei uma moeda no mar. Desejei que houvesse calma e não desespero quando os silêncios chegassem entre uma amenidade e outra da conversa. Para que, se ficasse muito nítido que já rodamos o mundo por tempo suficiente para não sermos mais príncipe ou princesa um do outro, quem sabe de ninguém, pelo menos o beijo tivesse a mesma língua. E que ela conversasse clara e objetivamente no idioma universal e vulgar de um desejo honesto. Se eu tivesse podido prever o roteiro, quereria que minha mão contra a tua nuca ascendesse firme e desse certeza. Às vezes só os prazeres da carne unem e vingam os desajeitos no resto da cena. Então, por favor, reconhece. Em silêncio, que seja. Aceita esse universo inteiro aqui e agora, ao teu lado, nu como ele te veio. Aproveita. Acredita, mesmo sem fazer ideia, que dessa vez quando você chegou eu já era outra. Mais completa. Mais livre. Mais minha. Embora por isso mesmo mais cética e mais cortante. Como o rio de Osho: nunca o mesmo rio e nunca o mesmo homem que o encontra. Implora com o jeito de olhar. E olha. Quero eternizar esse instante num baú de pequenas memórias memoráveis. Atravessa a visão sobre a saia moderninha no chão do quarto para finalmente encarar esta coragem sem precedentes e à mostra. Enxerga. Imagina que há um tédio que me encontra todo domingo à noite que só a memória breve de momentos peculiares como este é capaz de afastar. Comemora. Comemora já não ser o responsável por me salvar da solidão, mas o eleito para participar deste pequeno capítulo decisivo do processo. O único que importa: o capítulo de agora. Deita aqui e nota que quase um ano inteiro mudou a minha vida decisivamente - ou, pelo menos, meu modo de encará-la. Não, não, não foge agora. Não desvia ainda. Deixa pra depois. Encara aqui, de frente, esse mistério. Manhã cedo, as pontas dos dedos rosa claro contrastam com o metal escuro e oxidado do teu santo de estimação. Rezo em silêncio, eu que não sou crente, para que a espada em punho apontada para o céu seja capaz de me livrar dos desencontros e me fazer vencer a batalha contra os arrependimentos que comumente atraio para mim. Para esquecê-los por um instante, perdoando o tempo perdido. Suspeita. É claro que a gente vai se cansar disso tudo. Talvez hoje mesmo, mais tarde. Talvez amanhã, quando a rotina for a de sempre. Talvez em breve, com o passar dos dias. Mas este exato instante, o de agora, com os corpos próximos, exaustos e sonolentos, será imutável. Marcado num passado distante ou recente. Um tracinho a mais no labirinto do teu relógio quando eu olhar pra trás na minha vida. Então protege. Protege também este pequeno instante na tua memória, ainda que ele jamais se repita. Protege a lembrança deste abraço firme no vão da porta, vendo o mar sem dizer nenhuma palavra por um minuto ou dois, e acolhe com jeito essa versão passageira e independente de mim, que foi inventada para te receber, até que ela seja inteiramente verdadeira.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Uma coisa prosaica

Ela fuma usando um grampo de roupas. Acho que não gosta do cheiro, tanto quanto eu. Só da primeira tragada. A que requer mais coragem. Acho que não gosta da ideia das unhas amarelarem, porque aquela do pé já dá trabalho que chega. Fumar num prendedor dá a ela um certo distanciamento em relação à nicotina. Como quando ela abraça para cumprimentar. Evita que todo o corpo toque, exceto pelo momento em que, queimando, a cinza se aproxima demais do filtro. Então é inevitável: ela põe o prendedor um pouquinho mais para dentro, de um jeito que ele quase toca a ponta do nariz. Uma coisa prosaica. De verdade. Só vendo para entender. E fuma os últimos dois suspiros do décimo oitavo cigarro da noite, aproveitando a ausência da mais nova, enquanto me diz coisas sobre o caminho para a evolução espiritual feminina com ares de anciã. Abre o grampo, solta o cigarro que apaga na borda do copo de aço inox com um barulhinho peculiar. Solta também a fumaça. Meio para cima, meio para o lado. Solta. E recomeça. Fala da nossa longa linhagem de mulheres sábias. E eu concordo com a constatação, sem que a gente se envaideça disso. Acho que fuma para cumprir o estereótipo de escritora, conseguindo assim escrever a palavra sovaco num contexto, sem corar de vergonha. Enquanto fuma, ela ensina que não se diz a um homem que queria que ele isto ou aquilo, porque no fim eles fazem sempre o que querem e a gente passa por boba. Nós já passamos por bobas que chega. Ela finge já ter cansado. Aconselha a uma porção de coisas que já não consigo repetir, porque estive concentrada demais em somente vê-la fumando. Assinto com a cabeça sem entender uma única palavra da última metáfora. Tentando dar àquilo algum significado. E então me concentro de novo. Ensaiamos caladas uma frase inteligente que contenha a palavra "cerzidas", depois de ler e ouvir Cortázar. Não sai. Não com força o suficiente para que se escreva ou diga em voz alta. E nos reconhecemos uma na outra de um jeito que me assusta um pouco, porque eu não a compreendo de todo, tanto quanto não me compreendo. Lembrando assim, pareceremos igualmente malucas no imaginário. Como talvez sejamos. As coisas que ela viveu sozinha podem ser imaginadas e passadas para frente um pouco diferente do que foram. As que vivi também. Foi uma experiência ou a imaginação expandindo-se para o conto daquele causo mais adiante? Ela só escreve sobre o que viveu, talvez porque isto permita que viva de um jeito mais lírico. Lúdico até. Ela só escreve para alguém soltar uma gargalhada trinta anos depois. Até que mude de ideia. Saber que viver possibilitará que escreva a respeito faz com que seja um pouco personagem de si mesma. O que eu faria se eu fosse eu? Ela nem gosta do que escrevo. Acha que eu soo um pouco pedante. No que tem toda razão. Mas é que ela não viveu o que escrevo com os meus olhos, como vê-la fumar e parir vinte páginas numa manhã, sem dó nem dor. Ela esquece que falamos dos homens e das coisas da melhor forma que conseguimos, para tentar entender a experiência antes que nos escape. Antes que venha o próximo e ela tenha de aprender tudo de novo, do zero. Igualzinha a mim. Como se a paixão resetasse os progressos individuais e a gincana recomeçasse. Até que a gente finalmente aprenda e não precise vir de novo para esta terra sem sermos compreendidas. Prendendo cigarros em grampos. Fazendo e refazendo nossos trechos, até que nos venha a lição final, acima de todas as outras. Ela fumando, com toda a certeza. Muito provavelmente a dez horas de léguas submarinas de distância. E eu lembrando de que gostaria de compartilhar este aprendizado de perto com ela, nem que estivesse fumando num grampo de roupas. De nós, quem aprender primeiro com certeza escreverá para ensinar à outra.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O que eu sou pra quem já fui


Você já se perguntou o que ainda representa pra quem já foi bem mais um dia? Afinal, o que eu sou pra quem já fui? Um ácido. Um antiácido. Um borrão. Uma nuvenzinha disforme cinza claro passando vagarosamente no céu azul sem que ninguém perceba, a menos que repare bem.
Que sensações ainda sou capaz de produzir em quem já cruzou o meu caminho tão intimamente, depois sumiu numa cortina de fumaça? Ainda dou vertigem? Vontade de esganar? Pavor? Ojeriza? O quanto de indiferença as memórias não permitem que se sinta por mim? O quanto ainda é hábito me detestar ou enternecer comigo? Quantos diálogos hipotéticos cabem na cabeça de quem só conta agora com os meus silêncios?
O afastamento não permite saber.
Eu, além disso, sei que a mera suposição de que existam é vaidade pura.
Mas e se não fosse?
Quando, no caminho de volta pra casa, a música para e é necessário pensar em algo que passou nesta vida e nos tirou do eixo... Ou no meio de qualquer coisa, como não raro ocorre... O que será que de mim vem à mente, se é que algo vem? Eu sou aquela abordagem inesperada no meio da festa, que dá um pouco de taquicardia? O beijo úmido e demorado com hálito de vodka. O colo no momento de desespero. A eletricidade. O jeito que eu prendo os cabelos num nó quando sinto calor. O jeito que eu falo como se fosse dona da razão. O jeito que eu grito. O primeiro choro. A ponta do indicador percorrendo leve as espáduas.
Sabemos sempre o que mais nos marcou dos outros, mas jamais suspeitaremos com exatidão dos clímax que provocamos. Da relevância que temos no emaranhado de todas as outras histórias que as pessoas foram capazes de viver antes e depois de nós.
Presunçosa, eu nunca me importei com as vezes em que foi necessário se tornar persona non grata. Quem sabe isso tenha me feito permanecer sendo o ponto em vermelho de alguns preto-e-brancos das vidas alheias, quando olham pra trás. Não sei se eu ecoo à francesa, docemente, ou sempre um furacão. Deixando o rastro do desastre. Inesquecível. Gosto de fantasiar, porque eu honestamente não sei.  Porém - e talvez este seja o mistério que enlaça todas as coisas - eu tenho algumas intuições fortíssimas a respeito.

Sorrio. Neste exato momento estou convencida. Entre outras coisas, de que a vida é uma orquestra de cordas tocando, num arranjo inusitado, uma porção de hits que já conhecemos.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Destino

No outro dia, minha garganta doeu. Eu não sabia se era o choque térmico entre o calor escaldante do carro e o ar condicionado gelado contra o rosto ou uma doença mortal. Eu nunca sei. E me dou o malefício da dúvida. Acho que eu tenho medo da morte. Só não mais do que tenho da vida.
Que gosto estranho tem essa felicidade nervosa. Essa ressaca moral que só sente quem tem alguma moral. Que talvez nem quisesse ter. Que seria mais fácil não ter. Que gosto estranho tem mais uma história para não contar aos netos. Para não contar a ninguém. Para arquivar e esquecer, se deus quiser. Para aprender algo com isso, sabe-se lá o quê.
Como seria bom ter a chance de fazer virarem mentira todos os detalhes que precisei trocar rápido de resposta quando me perguntaram. Trocar de cor. Trocar de órbita. Trocar de vida. De personagem. Mas o vidro verde ainda estilhaça com segundos de atraso na memória.
Gozei de uma insônia insistente por dias a fio. De uma vontade de ocupar todo o tempo livre com um sono sem sonhos. Que não vinha. De beber até que fizesse sentido. Até que não sentisse mais dó de mim. Até que exterminasse os detalhes. Eu me espantei toda vez que lembrei com indiferença daquilo tudo. De quando me feri para deixar de não sentir. Para jogar com os perigos, como se não fosse contra a minha natureza.

Toda dor é absolutamente igual.
Se você dói, e todos doemos, eu te entendo um pouco melhor.
Se você dói e ninguém vê, te entendo mais.
Se você dói no escuro do quarto quando se pergunta em que ponto as coisas partiram para a fase atual, nós estamos doendo juntos. Mesmo que você não saiba. Tome aqui a minha solidariedade. Tome aqui a minha certeza de que todo mundo é um pouco tóxico - pelo menos para si mesmo.
Estive por aí, invisível. Naquele dia que poderia ou não ter mudado minha vida inteira, voltei de manhã. Enquanto essas palavras iam se desenhando apressadas na minha vida. Na minha pele. Na minha solidão. Com a certeza triste que só esbarrou em mim no dia seguinte, nas palavras de outra pessoa que já tinha sentido o mesmo antes de mim: A felicidade nunca escreveu um verso que preste.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Matando [Tempo]

Um homem não morre enquanto é lembrado. Para morrê-lo de vez, só o tempo. Embora a morte matada - ou seja, a intenção de esquecer - tenha algum valor neste processo. Na era digital, bloquear pode ser útil. Ignorar a existência da alegria que se vende nestas épocas e toda a chance de contato. Ou de surpresa indesejada. Mas, nem é preciso dizer, mesmo assim ficam chispas de coisas ditas e feitas voltando, seja para incendiar um pequeno discurso de ódio em memória do ausente para pequenas plateias, ou então para lembrar sem mais nem menos do amor duro, feito no chão com muito cansaço e poeira, os joelhos doloridos das frestas do chão de madeira. Como se tais episódios fossem dissociados do panorama geral e do contexto máximo de todas as coisas.
A memória de um homem que foi amado registra na carne da ex amante uma tatuagem feita de tinta da devoção que lhe entregou domingo bem cedo, logo depois de acordar, com o estômago ainda vazio. E essa tatuagem demora a sair da cabeça da gente. Ou pelo menos foi assim comigo. As pessoas até estranhariam, se soubessem. Porque é óbvio que não há mais uma gota de romance possível. Mas, havemos de convir, há ainda um vínculo fino insistente, tanto quanto diáfano, bifurcado a partir do passado comum. Até que se esqueça dele.
Estou convencida de que o ódio, a memória do sexo e a indiferença são os três estágios finais de decomposição de um amor. O ódio, porque é preciso de um pouco dele para ressuscitar os nossos brios. Para parecer impassível. É o início do fim. Se a gente se demora no ódio, não avança para os outros dois. Os outros dois, porque não há muito que se possa decidir voluntariamente sobre eles. São as últimas cápsulas concentradas, engolidas a seco, de uma doença contra a qual já estamos vacinados.
Um homem não morre enquanto é lembrado, para quem é lembrado, e às vezes é mais difícil lidar com seu fantasma do que com sua presença. Porque essa última se pode abandonar voluntariamente, sem retorno. A lembrança, não. Tem vida própria.
Voltaste às vezes, desde as últimas mortes. No semáforo parado. Na mureta daquele hotel em Arraial D'Ajuda. Na conversa com o cliente anarco-capitalista. E, mais recentemente, no puro suco da dor de cotovelo, que bebi apressada sem adoçar com rodeios, sabendo tudo que era possível e preciso em três dias consecutivos. Depois sepultei a pequena obsessão: era preciso abstrair e voltar à rotina em que tu só me vens de susto, sem querer, de vez em quando. Eu me comprometi comigo. Não vou mais atrás de voltar para o primeiro estágio.
Mas sei que enquanto houver quem sinta o seu legado no dia a dia, bom ou mau, muito ou de vez em quando, um homem vive, a contragosto de suas viúvas. Pelo menos enquanto não consigam fazer ou serem feitas plenamente felizes, e nele possam por a culpa.
Dou graças! Todo rosto um dia se dissolve na memória. Deve ser por isso que há foto dos falecidos nas lápides. Para que se tornem mais presentes. Quando já não há mais rosto, não há mais chispa. Sei porque, nesse tempo, diminuíram muito. Então resolvi gastar bem o lirismo nesta escrita de despedida tomando o cuidado de não usar palavras superlativas como adeus, perdão ou nunca mais.

Matar o tempo em prosa é o último suspiro antes do olvido. Demorado.
Um belo dia, depois de um tempo, tenho certeza que eu vou te matar: de completamente esquecido.

Causa mortis: "senhora dos silêncios, rosa do oblívio".

Verão de 2018.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Eco [14]

A primeira vez em que eu fui abandonado mudou a minha vida decisivamente. A primeira vez em que me senti insuficiente, também. A sensação de rejeição nunca mais deixou de penar sobre a minha cabeça como um fantasma desalmado. Embora eu tenha tido milhares de bons e leves momentos depois, o inferno sempre vinha. Com aquele desespero próprio do abandono eu descobri o que era taquicardia, insônia e estômago embrulhado mesmo com a dieta em dia.
Nunca mais parei de me cobrar a perfeição como se ela fosse tangível. E sofri tanto, tanto, toda vez que percebi que falharia e machucaria quem eu só queria amar. Porque eu criei uma casca, um escudo, uma resistência. Não por mal, nem sempre eu tomaria dois litros de água por dia, escovaria os dentes antes de dormir e cumprimentaria o porteiro. Nem sempre eu seria uma boa pessoa. Eu não amaria direito e macio e em paz de forma perene. Aliás, quase nunca. Esta não era uma qualidade que eu poderia oferecer. Essa medida do quanto eu era falível me vinha com um medo de que ela me cortasse da vida em definitivo. Depois de me rejeitarem primeiro, nunca mais deixei de amar narciso, acreditando que só daria certo com um espelho. Com defeitos que eu já conhecesse em mim. Nunca encontrei uma pessoa-espelho. Fiquei sendo o fiscal das minhas fraquezas. E as projetava maiores do que poderiam ser, como quem prova uma roupa nova e, apesar de achar linda, mira duas vezes e não gosta do caimento nos ombros. Quem sabe em outro corpo o amor cairia bem.
Depois daquela primeira vez foi sempre como se eu fosse uma criança que dependesse de estar agarrado no seio de sua mãe para manter-se vivo. Para manter-se a salvo de sua própria miséria individual e solitária. Sendo o seio da mãe o ser amado e eu a face infantil da dependência. Que precisasse espernear para ter atenção, e que espernearia, de qualquer modo, mesmo que não precisasse. Atenção exclusiva, exclusivíssima, me jura e me prova, amor, pula daquele prédio, amor, põe aqui este cabresto, amor, senão já não me deixava mais seguro que chega, amor. Impus minhas vontades como soberanas. Ou me foi dado um cetro para que governasse aquele relacionamento? Dei muito show, que é pra ter certeza do público. Que mal imenso e injusto o abandono fez comigo. E com a Laura. Ora, ora, que grosseria abominável da vida um amor daquele acabar.
A primeira vez em que eu amei com unhas e dentes potencializou muitíssimo a sensação de abandono, porque ela vinha acompanhada da perda de uma energia vital. Com um choro soluçante de quem conhece bem a fórmula para ser acalmado, mas não está sendo. Precisa agora parar, sozinho. Secar sozinho as próprias lágrimas com o desejo de que alguém as sorvesse com a classe e delicadeza do chá das cinco. Como se não fosse esforço nenhum fazer a digestão de cacos de porcelana salgada.
A Laura foi a razão da minha ruína. Cortou minhas vísceras por dentro, enquanto eu fazia cara de paisagem para tentar engoli-la plenamente. Quando a perdi, perdi também minha integridade como homem e indivíduo. Perdi meu propósito mais imediato. Eu quis tanto não ter adormecido agarrado em sua camiseta manchada de desodorante. Quis gozar de boa saúde e não ter o corpo inteiro denunciando em coceira a falta que ela me fazia. Ajoelhar suplicando perdão por já ter sido abandonado um dia. E por ter medo. Por não conseguir deixar para lá. Por me fazer de vítima quando o abusivo era eu. Por me sentir deficiente. Por não oferecer a ela a compreensão de que ela precisava. Por ela esbanjar tudo que me faltava, e vice-versa. Mas nenhuma súplica apagaria nada. Porque o perdão, um sábio me disse um dia, não é amnésia. O desespero da Laura diante da vida continuaria sempre medindo forças com o meu. Que era tanto, depois do primeiro abandono. E só queríamos deitar em nossos travesseiros e dormir de novo tranquilos como antes de nos encontrarmos e abandonarmos. Mas nunca mais.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eco [13]

Confesso que em alguns momentos eu pensei que houvesse aprendido, pelo amor, a amar a Laura de um jeito livre. A compreender que ela poderia beijar duas centenas de bocas, deitar-se com mais de uma dúzia de corpos, ou quem sabe um belo dia se apaixonar por outra pessoa e, ainda assim, no íntimo eu seria para ela tudo aquilo ou mais que ela havia sido para mim.
Em outros, pela dor, pensei que houvesse aprendido que o nosso amor não passava de um daqueles furos que conhecidos distantes, como fontes anônimas, dariam a jornalistas e escritores para a produção de biografias impróprias e não-autorizadas, quando alguém é acometido pela fama (para enriquecer a monotonia da minha vida, se o famoso fosse eu, ou para exagerar nos detalhes sórdidos da vida excêntrica que ela sempre levou, se a famosa fosse ela).

Mas não aprendi nada sobre nós. Decisivamente, ao menos, nada.
Queria que fosse linear, mas eu aprendo e desaprendo coisinhas miúdas todos os dias.

Devaneio insistente essas coisas porque, sabemos, sobram sempre muito mais perguntas do que respostas absolutas quando algo assim acaba. Escrevo, mesmo sabendo que nunca chegarei a uma conclusão definitiva, porque escrever me ajuda a especular o motivo para que ela tenha me deixado, ou expiar os bodes, ou simplesmente investigar as reais razões da nossa ruína.
Às vezes eu sinto e sentia que poderíamos ter insistido, noutras acreditava e acredito que estávamos perdendo tempo. O fato de que foi ela quem teve um ímpeto para consumar a decisão pela segunda opção foi um completo acaso, mas ele traz consigo um peso enorme para o ajuste das coisas nos atos seguintes deste teatro de superação pós-término: sendo eu a vítima, ela o algoz. Ela a bandida e eu o mocinho.
Para aliviar a consciência, Laura deve ter se convencido de que éramos incompatíveis. E nós éramos? Eu não sei se nós éramos. E ela também nunca mais vai saber, apenas lutar para se convencer disso, quando as perguntas que sobraram ao nosso respeito lhe pegarem desprevenida no meio do dia - se é que pegarão. A incompatibilidade é uma desculpa tão, tão, tão genérica e boa para evitar o enfrentamento dessas minúcias e mudanças todas que nós exigíamos na vida um do outro, que ela passa, impunemente, como uma grande verdade.
Teríamos nos amado para sempre, se eu fosse outro? Eu não fui outro. Quanto me custaria ser outro? Ela teria ficado, se eu estivesse mais disposto? Eu não estive mais disposto. A desistência se confunde um pouquinho com a covardia. A Laura desistiu. E tudo bem, ninguém pode culpá-la. Eu também fui presenteado com uma covardia ímpar para lutar contra os nãos que me deram e eu achei que mereci.
Sabia que a Laura seguiria em frente antes de mim. Digo, envolver-se romanticamente com outra pessoa. Eu só não sei se eu tinha essa certeza porque a considero carente e fraca, sangue frio e forte, carente e forte, sangue frio e fraca, ou carente e sangue frio. E, de novo, fosse como fosse, quem poderia culpá-la? A alma humana é cheia dessas complexidades e combinações inusitadas.
Eu só não cairia de novo na armadilha de demonstrar que achava que tinha perdido a corrida a que nos propusemos em direções opostas depois do fim. Porque eu tinha, é claro que eu tinha, mas ela não precisava saber. Quando a gente se dá conta, passou tempo suficiente para que não faça sentido dizer palavras cruéis advogando em defesa das nossas misérias. Mais tarde, não faz sentido exigir que a vida dê o troco ad eternum a alguém que nos feriu.

Laura e eu nunca seremos famosos. Ninguém se lembrará de nós. A opinião pública nunca será incitada a tomar partido, para decidir quem tinha razão. Nunca mais haverá gesto doce que restaure nela a fé na minha humanidade. E vice-versa. Os mistérios e chaves de como aquele relacionamento poderia ter funcionado continuarão sendo soterrados por montanhas de esquecimento, de minha parte lavados por rios de uma apatia forjada a muito custo.
A ferrugem do que jamais diremos em voz alta outra vez corroerá nossa última chance. O ácido do desencontro dissipará nossos ossos, até que nada nos sustente. Até que seja indolor. E nossas línguas, até que não seja mais dita nenhuma palavra a respeito. E nossa vontade de amar de novo, de um jeito honesto e novo.

Até que amemos outra vez.

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Miséria puxa miséria

Cada um lida com a própria miséria como pode. Não me refiro à miséria econômica, é claro, mas à miséria individual e particular de cada um. Cada um conhece a sua própria miséria como ninguém, mesmo que não a confesse. Há quem sinta inveja. Há quem sinta que não é digno de ser amado. Há quem sinta medo da opinião alheia. Há quem sinta dó de si mesmo. Há quem sinta uma culpa cristã por qualquer coisa. Há quem saiba das suas deficiências de caráter, trancado no box. Deus ajude, chorando no banho. Há quem perceba a própria inconsistência entre o discurso e a prática. Há quem sinta um sadismo muito peculiar por não achar que o outro mereça ser feliz. Não já. Talvez nunca.
As misérias são o que há de pior em cada um. Aqueles defeitos sutis dos quais a gente não se orgulha. Nem se livra.
De fora, é muito fácil ver a miséria dos outros. E embora as misérias sejam a poeirinha fina que se arrasta pra baixo do tapete sem muita dificuldade, são dificílimas de remover por completo. São fissurinhas num copo de cristal que continua útil, talvez até nunca se quebre por conta disso, mas nunca mais será igual - basta que a gente se detenha nelas. As misérias são o calcanhar de Aquiles que a convivência íntima não permite ocultar por muito tempo.
As misérias são, de sua natureza, tristes. Porque irremediáveis. As pessoas tendem, de sua natureza, a fugir dessa tristeza por algum atalho: se envolvendo. Evitando. Se desculpando. Minimizando. Se vitimizando. Ignorando. 
Hoje eu quis lembrar, gritando alto, que há misérias piores que outras.
Mas já não há.
Cada um lida com a própria miséria como pode.