sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Matando [Tempo]

Um homem não morre enquanto é lembrado. Para morrê-lo de vez, só o tempo. Embora a morte matada - ou seja, a intenção de esquecer - tenha algum valor neste processo. Na era digital, bloquear pode ser útil. Ignorar a existência da alegria que se vende nestas épocas e toda a chance de contato. Ou de surpresa indesejada. Mas, nem é preciso dizer, mesmo assim ficam chispas de coisas ditas e feitas voltando, seja para incendiar um pequeno discurso de ódio em memória do ausente para pequenas plateias, ou então para lembrar sem mais nem menos do amor duro, feito no chão com muito cansaço e poeira, os joelhos doloridos das frestas do chão de madeira. Como se tais episódios fossem dissociados do panorama geral e do contexto máximo de todas as coisas.
A memória de um homem que foi amado registra na carne da ex amante uma tatuagem feita de tinta da devoção que lhe entregou domingo bem cedo, logo depois de acordar, com o estômago ainda vazio. E essa tatuagem demora a sair da cabeça da gente. Ou pelo menos foi assim comigo. As pessoas até estranhariam, se soubessem. Porque é óbvio que não há mais uma gota de romance possível. Mas, havemos de convir, há ainda um vínculo fino insistente, tanto quanto diáfano, bifurcado a partir do passado comum. Até que se esqueça dele.
Estou convencida de que o ódio, a memória do sexo e a indiferença são os três estágios finais de decomposição de um amor. O ódio, porque é preciso de um pouco dele para ressuscitar os nossos brios. Para parecer impassível. É o início do fim. Se a gente se demora no ódio, não avança para os outros dois. Os outros dois, porque não há muito que se possa decidir voluntariamente sobre eles. São as últimas cápsulas concentradas, engolidas a seco, de uma doença contra a qual já estamos vacinados.
Um homem não morre enquanto é lembrado, para quem é lembrado, e às vezes é mais difícil lidar com seu fantasma do que com sua presença. Porque essa última se pode abandonar voluntariamente, sem retorno. A lembrança, não. Tem vida própria.
Voltaste às vezes, desde as últimas mortes. No semáforo parado. Na mureta daquele hotel em Arraial D'Ajuda. Na conversa com o cliente anarco-capitalista. E, mais recentemente, no puro suco da dor de cotovelo, que bebi apressada sem adoçar com rodeios, sabendo tudo que era possível e preciso em três dias consecutivos. Depois sepultei a pequena obsessão: era preciso abstrair e voltar à rotina em que tu só me vens de susto, sem querer, de vez em quando. Eu me comprometi comigo. Não vou mais atrás de voltar para o primeiro estágio.
Mas sei que enquanto houver quem sinta o seu legado no dia a dia, bom ou mau, muito ou de vez em quando, um homem vive, a contragosto de suas viúvas. Pelo menos enquanto não consigam fazer ou serem feitas plenamente felizes, e nele possam por a culpa.
Dou graças! Todo rosto um dia se dissolve na memória. Deve ser por isso que há foto dos falecidos nas lápides. Para que se tornem mais presentes. Quando já não há mais rosto, não há mais chispa. Sei porque, nesse tempo, diminuíram muito. Então resolvi gastar bem o lirismo nesta escrita de despedida tomando o cuidado de não usar palavras superlativas como adeus, perdão ou nunca mais.

Matar o tempo em prosa é o último suspiro antes do olvido. Demorado.
Um belo dia, depois de um tempo, tenho certeza que eu vou te matar: de completamente esquecido.

Causa mortis: "senhora dos silêncios, rosa do oblívio".

Verão de 2018.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Eco [14]

A primeira vez em que eu fui abandonado mudou a minha vida decisivamente. A primeira vez em que me senti insuficiente, também. A sensação de rejeição nunca mais deixou de penar sobre a minha cabeça como um fantasma desalmado. Embora eu tenha tido milhares de bons e leves momentos depois, o inferno sempre vinha. Com aquele desespero próprio do abandono eu descobri o que era taquicardia, insônia e estômago embrulhado mesmo com a dieta em dia.
Nunca mais parei de me cobrar a perfeição como se ela fosse tangível. E sofri tanto, tanto, toda vez que percebi que falharia e machucaria quem eu só queria amar. Porque eu criei uma casca, um escudo, uma resistência. Não por mal, nem sempre eu tomaria dois litros de água por dia, escovaria os dentes antes de dormir e cumprimentaria o porteiro. Nem sempre eu seria uma boa pessoa. Eu não amaria direito e macio e em paz de forma perene. Aliás, quase nunca. Esta não era uma qualidade que eu poderia oferecer. Essa medida do quanto eu era falível me vinha com um medo de que ela me cortasse da vida em definitivo. Depois de me rejeitarem primeiro, nunca mais deixei de amar narciso, acreditando que só daria certo com um espelho. Com defeitos que eu já conhecesse em mim. Nunca encontrei uma pessoa-espelho. Fiquei sendo o fiscal das minhas fraquezas. E as projetava maiores do que poderiam ser, como quem prova uma roupa nova e, apesar de achar linda, mira duas vezes e não gosta do caimento nos ombros. Quem sabe em outro corpo o amor cairia bem.
Depois daquela primeira vez foi sempre como se eu fosse uma criança que dependesse de estar agarrado no seio de sua mãe para manter-se vivo. Para manter-se a salvo de sua própria miséria individual e solitária. Sendo o seio da mãe o ser amado e eu a face infantil da dependência. Que precisasse espernear para ter atenção, e que espernearia, de qualquer modo, mesmo que não precisasse. Atenção exclusiva, exclusivíssima, me jura e me prova, amor, pula daquele prédio, amor, põe aqui este cabresto, amor, senão já não me deixava mais seguro que chega, amor. Impus minhas vontades como soberanas. Ou me foi dado um cetro para que governasse aquele relacionamento? Dei muito show, que é pra ter certeza do público. Que mal imenso e injusto o abandono fez comigo. E com a Laura. Ora, ora, que grosseria abominável da vida um amor daquele acabar.
A primeira vez em que eu amei com unhas e dentes potencializou muitíssimo a sensação de abandono, porque ela vinha acompanhada da perda de uma energia vital. Com um choro soluçante de quem conhece bem a fórmula para ser acalmado, mas não está sendo. Precisa agora parar, sozinho. Secar sozinho as próprias lágrimas com o desejo de que alguém as sorvesse com a classe e delicadeza do chá das cinco. Como se não fosse esforço nenhum fazer a digestão de cacos de porcelana salgada.
A Laura foi a razão da minha ruína. Cortou minhas vísceras por dentro, enquanto eu fazia cara de paisagem para tentar engoli-la plenamente. Quando a perdi, perdi também minha integridade como homem e indivíduo. Perdi meu propósito mais imediato. Eu quis tanto não ter adormecido agarrado em sua camiseta manchada de desodorante. Quis gozar de boa saúde e não ter o corpo inteiro denunciando em coceira a falta que ela me fazia. Ajoelhar suplicando perdão por já ter sido abandonado um dia. E por ter medo. Por não conseguir deixar para lá. Por me fazer de vítima quando o abusivo era eu. Por me sentir deficiente. Por não oferecer a ela a compreensão de que ela precisava. Por ela esbanjar tudo que me faltava, e vice-versa. Mas nenhuma súplica apagaria nada. Porque o perdão, um sábio me disse um dia, não é amnésia. O desespero da Laura diante da vida continuaria sempre medindo forças com o meu. Que era tanto, depois do primeiro abandono. E só queríamos deitar em nossos travesseiros e dormir de novo tranquilos como antes de nos encontrarmos e abandonarmos. Mas nunca mais.

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Eco [13]

Confesso que em alguns momentos eu pensei que houvesse aprendido, pelo amor, a amar a Laura de um jeito livre. A compreender que ela poderia beijar duas centenas de bocas, deitar-se com mais de uma dúzia de corpos, ou quem sabe um belo dia se apaixonar por outra pessoa e, ainda assim, no íntimo eu seria para ela tudo aquilo ou mais que ela havia sido para mim.
Em outros, pela dor, pensei que houvesse aprendido que o nosso amor não passava de um daqueles furos que conhecidos distantes, como fontes anônimas, dariam a jornalistas e escritores para a produção de biografias impróprias e não-autorizadas, quando alguém é acometido pela fama (para enriquecer a monotonia da minha vida, se o famoso fosse eu, ou para exagerar nos detalhes sórdidos da vida excêntrica que ela sempre levou, se a famosa fosse ela).

Mas não aprendi nada sobre nós. Decisivamente, ao menos, nada.
Queria que fosse linear, mas eu aprendo e desaprendo coisinhas miúdas todos os dias.

Devaneio insistente essas coisas porque, sabemos, sobram sempre muito mais perguntas do que respostas absolutas quando algo assim acaba. Escrevo, mesmo sabendo que nunca chegarei a uma conclusão definitiva, porque escrever me ajuda a especular o motivo para que ela tenha me deixado, ou expiar os bodes, ou simplesmente investigar as reais razões da nossa ruína.
Às vezes eu sinto e sentia que poderíamos ter insistido, noutras acreditava e acredito que estávamos perdendo tempo. O fato de que foi ela quem teve um ímpeto para consumar a decisão pela segunda opção foi um completo acaso, mas ele traz consigo um peso enorme para o ajuste das coisas nos atos seguintes deste teatro de superação pós-término: sendo eu a vítima, ela o algoz. Ela a bandida e eu o mocinho.
Para aliviar a consciência, Laura deve ter se convencido de que éramos incompatíveis. E nós éramos? Eu não sei se nós éramos. E ela também nunca mais vai saber, apenas lutar para se convencer disso, quando as perguntas que sobraram ao nosso respeito lhe pegarem desprevenida no meio do dia - se é que pegarão. A incompatibilidade é uma desculpa tão, tão, tão genérica e boa para evitar o enfrentamento dessas minúcias e mudanças todas que nós exigíamos na vida um do outro, que ela passa, impunemente, como uma grande verdade.
Teríamos nos amado para sempre, se eu fosse outro? Eu não fui outro. Quanto me custaria ser outro? Ela teria ficado, se eu estivesse mais disposto? Eu não estive mais disposto. A desistência se confunde um pouquinho com a covardia. A Laura desistiu. E tudo bem, ninguém pode culpá-la. Eu também fui presenteado com uma covardia ímpar para lutar contra os nãos que me deram e eu achei que mereci.
Sabia que a Laura seguiria em frente antes de mim. Digo, envolver-se romanticamente com outra pessoa. Eu só não sei se eu tinha essa certeza porque a considero carente e fraca, sangue frio e forte, carente e forte, sangue frio e fraca, ou carente e sangue frio. E, de novo, fosse como fosse, quem poderia culpá-la? A alma humana é cheia dessas complexidades e combinações inusitadas.
Eu só não cairia de novo na armadilha de demonstrar que achava que tinha perdido a corrida a que nos propusemos em direções opostas depois do fim. Porque eu tinha, é claro que eu tinha, mas ela não precisava saber. Quando a gente se dá conta, passou tempo suficiente para que não faça sentido dizer palavras cruéis advogando em defesa das nossas misérias. Mais tarde, não faz sentido exigir que a vida dê o troco ad eternum a alguém que nos feriu.

Laura e eu nunca seremos famosos. Ninguém se lembrará de nós. A opinião pública nunca será incitada a tomar partido, para decidir quem tinha razão. Nunca mais haverá gesto doce que restaure nela a fé na minha humanidade. E vice-versa. Os mistérios e chaves de como aquele relacionamento poderia ter funcionado continuarão sendo soterrados por montanhas de esquecimento, de minha parte lavados por rios de uma apatia forjada a muito custo.
A ferrugem do que jamais diremos em voz alta outra vez corroerá nossa última chance. O ácido do desencontro dissipará nossos ossos, até que nada nos sustente. Até que seja indolor. E nossas línguas, até que não seja mais dita nenhuma palavra a respeito. E nossa vontade de amar de novo, de um jeito honesto e novo.

Até que amemos outra vez.

Qualquer amor já é um pouquinho de saúde.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Miséria puxa miséria

Cada um lida com a própria miséria como pode. Não me refiro à miséria econômica, é claro, mas à miséria individual e particular de cada um. Cada um conhece a sua própria miséria como ninguém, mesmo que não a confesse. Há quem sinta inveja. Há quem sinta que não é digno de ser amado. Há quem sinta medo da opinião alheia. Há quem sinta dó de si mesmo. Há quem sinta uma culpa cristã por qualquer coisa. Há quem saiba das suas deficiências de caráter, trancado no box. Deus ajude, chorando no banho. Há quem perceba a própria inconsistência entre o discurso e a prática. Há quem sinta um sadismo muito peculiar por não achar que o outro mereça ser feliz. Não já. Talvez nunca.
As misérias são o que há de pior em cada um. Aqueles defeitos sutis dos quais a gente não se orgulha. Nem se livra.
De fora, é muito fácil ver a miséria dos outros. E embora as misérias sejam a poeirinha fina que se arrasta pra baixo do tapete sem muita dificuldade, são dificílimas de remover por completo. São fissurinhas num copo de cristal que continua útil, talvez até nunca se quebre por conta disso, mas nunca mais será igual - basta que a gente se detenha nelas. As misérias são o calcanhar de Aquiles que a convivência íntima não permite ocultar por muito tempo.
As misérias são, de sua natureza, tristes. Porque irremediáveis. As pessoas tendem, de sua natureza, a fugir dessa tristeza por algum atalho: se envolvendo. Evitando. Se desculpando. Minimizando. Se vitimizando. Ignorando. 
Hoje eu quis lembrar, gritando alto, que há misérias piores que outras.
Mas já não há.
Cada um lida com a própria miséria como pode.